segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Conversa di Preto

ESCRAVIDÃO E REPRODUÇÃO: A MULHER PRETA E O ESTUPRO
Por Walter Passos - Historiador
E-mail: walterpassos21@yahoo.com.br 

É deveras incomodativo para os historiadores pretos que escrevem sobre a escravidão o assunto da reprodução, ao passo que enquanto estamos reconstruindo a nossa própria história nos deparamos com a indústria do estupro.
O homem preto foi utilizado como reprodutor, vitimando a mulher preta. Estupro forçado pelos senhores e senhoras brancos cristãos. Não somente escravizados foram usados para a reprodução, muitos senhores violentavam as escravizadas, entre eles, padres.
Os nossos ancestrais prisioneiros da mais violenta e genocida guerra da história mundial eram tratados como mercadorias em uma fabrica de bebês para aumentar a riqueza dos donos de escravizados.
A escravidão não havia a conceituação que temos hoje de estupro ou de violações, para o escravizador, os escravizados eram bens móveis sub-humanos, não possuíam direitos e eram considerados coisas, propriedades.
Há diversos relatos na historiografia de casamentos entre escravizados e também de separação de famílias, dependia dos interesses econômicos dos senhores. Possuir escravizados dóceis com laços familiares era interessante como chantagem emocional e controle para fugas e rebeliões. Encontrei comunidades oriundas de senzalas no estado da Bahia, formada exclusivamente por famílias há diversas gerações, quando fiz o primeiro mapeamento sistemático de quilombos baianos e publiquei o livro: Bahia: Terra de Quilombos em 1996.
Alguns fatores podem ser pontuados para a prática da reprodução, sendo bom ressaltar que uma mulher escravizada tinha o valor de dois homens escravizados, porque ela além de exercer os trabalhos nas plantações, minas, serviços de ganho nas cidades, o serviço doméstico, prostituição forçada por senhoras de boas famílias e freiras católicas, gerava mão de obra gratuita e lucro para o escravizador.
Muitos senhores alugavam os escravizados reprodutores e a quantia paga pelo locatário proporcionava um bom lucro:
- Escravizadas que após parirem tinha as suas tetas alugadas.
- Crianças comercializadas, os meninos sendo filhos de reprodutores representava uma boa linhagem.
- Futuros trabalhadores nas casas grandes e fazendas (crias da casa).
Alguns fatores contribuíram para a indústria da reprodução de escravizados:
º Receios de rebelião de escravizados recém-chegados da África;
º Impacto econômico causado por leis que restringiram ou eliminaram a importação de escravizados;
º A necessidade de mão de obra barata para acompanhar o crescimento da agricultura e
º Uma espécie de eugenia que escravizados bem dotados de saúde gerariam crianças saudáveis.
Características do Reprodutor:
O reprodutor, sempre um escravizado forte e de boa saúde era tratado diferentemente da escravaria. Não realizava trabalho pesado, era bem alimentado e dispunha de muitas horas para o descanso. Era o mais cobiçado e valioso.
Há na história afro-americana alguns depoimentos de ex-reprodutores que trazem relatos monstruosos e se consideravam “heróis” e não reconheceram o mal psicológico que fizeram a um numero incontável de mulheres e as crianças geradas do desamor.
Inclusive alguns pretos bobos gostam de afirmar que são descendentes de reprodutores (estupradores). A escravidão gerou pessoas que tiveram a dignidade vilipendiada. Necessário à autocrítica e repulsa aos atos senhoris dos brancos cristãos escravizadores.
Abaixo alguns trechos:
A Sinhá correu a senzala e apartou as escrava que tava no "vicio", nas quadra da lua. Quando a quadra da lua tá certa, a "cria" é garantida. Era um rebanho de umas dez, no ponto pra tirar raça. Não era qualquer fazenda que tinha reprodutor nagô-mina, como eu. No rebanho tinha uma chamada Duca, do lombo bem feito, da anca lisa, de tetas que ia dar bom ubre, de umbigo bem curado, uns quarto que dava gosto. Andei no meio delas, negaceando, mas só via a Duca. Mas ela arrepiou, medrosa. Correu se esconder. Mas reprodutor é bicho paciencioso. Eu sabia que tinha um mês para repassar todas. De longe eu ouvia o choro dela, baixinho pra ninguém ouvir. Se a Sinhá ouvisse, o "bacalhau" comia no lombo. Fui chegando de mansinho, com fala macia, agradando. Eu era reprodutor que sabia tratar suas fêmea. O choro virou cochicho e, no fim da tarde, a Duca, negrinha de quinze pra dezesseis anos, já tava prenha. 
 
http://realidaderevista.blogspot.com.br/…/confissoes-de-um-…
"Os senhores de escravos da região de Biguaçu no século 19 pensavam que, se as escravas fossem engravidadas por escravos desobedientes, os filhos dessa união puxariam a índole do pai, isto é, tornar-se-iam desobedientes. Daí os senhores selecionarem os "machos" de suas escravas. Esses "garanhões" eram chamados de "baguás",
Quem eram os "baguás"? Eram os "negros de classe", como eram chamados na época os escravos obedientes e serviçais. Cada senhor tinha seu(s) escravo(s) preferido(s). Estes escoltavam os senhores em suas andanças. Muitas vezes eram tão fiéis ao patrão que denunciavam os companheiros que tramassem alguma coisa contra o senhor. Por isso, os "negros de classe" gozavam de regalias. Não faziam o trabalho duro da roça como os outros escravos. Muitas vezes, em retribuição, o senhor dava a permissão ao "negro de classe" virar "baguá". Mas para ser "baguá" não bastava ser obediente. Era preciso também ser forte e robusto. Se o escravo fosse fiel e robusto, a promoção para "baguá" era rápida.
Segundo Jaime Coutinho, o ritual do "engravidamento" começava com o senhor mandando as escravas irem para o "mato". Logo depois chamava o "baguá". Dava o nome das escravas e ordenava: "Vá capinar com elas". Entendido o recado, o "baguá" partia para a "missão", embrenhando-se na mata atrás das escravas indicadas pelo senhor.
Não se sabe se as escravas resistiam ou cumpriam a "ordem" sem protestar. O fato é que, meses depois, os escravinhos nasciam. Conforme Coutinho, muitos dos filhos dos "baguás" eram vendidos para capitães de navios vindos da Argentina e Paraguai que paravam em São Miguel para abastecer-se de água, vinda de um aqueduto que avançava vários metros após a praia. As crianças eram trocadas por carne.

Fonte: http://www1.an.com.br/2000/jan/04/0ane.htm 
Guaraciaba afirmou que deixou mais de 300 filhos: 100 para D. Pedro II e 200 para o Barão de Mauá, fora os que teve com as mulheres da fazenda de seu pai em Campos, ainda adolescente. “Ficou nessa vida de reprodutor deitando com duas, três, quatro mulheres por dia nas senzalas em que o Barão e o Imperador mandavam até os 38 anos, quando a Princesa Izabel aboliu a escravidão...
Fonte: http://pedacosdanossahistoria.blogspot.com.br/…/memrias-de-…
  
Para a mulher preta o estupro e a separação dos seus filhos se tornaram os maiores pesadelos da escravidão. Atos machistas de homens escravizados que perderam a respeitabilidade por suas irmãs de infortúnio. O estuprador sempre é estuprador.
Na minha concepção, a violação da mulher preta pelo homem branco ou pelo reprodutor preto foi uma violação que deve ser censurada, condenada e relembrada pela história.
Muitos dos ledores e ledoras desse artigo que não podem responder nesse exato momento, sem perguntar ou pesquisar os nomes dos tataravôs maternos e paternos, se questionam: será que eu sou descendente de um reprodutor?

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Marcha Nacional das Mulheres Negras

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Marcello Casal Jr/Agência BrasilMarcello Casal Jr/Agência Brasil

Publicada em 14:20 28/07/2015 - por: Luana Lourenço - Repórter da Agência Brasil
“Nosso feminismo se inspira nas guerreiras africanas. Levantar a cabeça é necessário, negras e pretas revolucionárias”. Os versos de rap cantados pela ativista Larissa Borges embalou sábado (25) a discussão sobre a primeira Marcha de Mulheres Negras, marcada para o dia 18 de novembro, em Brasília. Reunidas na 8ª edição do Festival Latinidades, cerca de 50 mulheres trocaram experiências sobre a identidade negra feminina e as principais demandas desse público, que serão apresentadas na marcha.
“O Movimento de Mulheres Negras, a partir da marcha, inaugura um novo processo de empoderamento e uma nova etapa na agenda política das mulheres negras no Brasil e na América Latina”, avaliou Larissa, que é diretora de programas de Ações Afirmativas da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir).
A ampliação do protagonismo das mulheres negras, que estão presentes em diversos movimentos sociais, também foi destacada pela historiadora Gisele dos Anjos Santos, uma das organizadoras da mobilização em São Paulo. “As mulheres negras estão em todos os movimentos sociais, a grande questão é saber a posição que essas mulheres ocupam. Na marcha, vamos estar à frente da construção de todo o processo e vamos sentar à mesa para discutir e negociar o que nos implica diretamente e está relacionado a nossa possibilidade de sobreviver nesse país”, apontou.
Entre as questões que serão levadas à marcha, estão temas como visibilidade e identidade das mulheres negras. “Ainda temos meninas que não têm coragem de sair na rua com turbante na cabeça, têm medo do que vão dizer delas”, lembrou a professora e rapper Vera Verônica. “Vamos marchar pelas nossas crianças, pelos nossos filhos, pelas mulheres que ainda não nasceram e pelas que morreram por nós, vamos juntas.”
Emocionada, a estudante Gabriela Nascimento deu um depoimento sobre as contradições vividas por ela sendo negra em uma escola de classe média de maioria branca e disse que mobilizações como a da marcha dão voz às mulheres negras e garantem espaço de reconhecimento de identidades e afirmação da beleza e da cultura negras.
“Marchar vai significar um momento em que vou resistir ao cotidiano. Vou marchar para que as pessoas possam se reconhecer como negras, não queiram se embranquecer”.
Marcello Casal Jr/Agência Brasil

A violência de gênero, o racismo institucional e o genocídio da juventude negra também integram a agenda das mulheres negras e foram lembrados no debate deste sábado. “Por que vou marchar? Porque tenho três filhos e dois netos homens, e como outras mães, quero dar um basta ao genocídio dos brasileiros negros. Vivemos com medo de saber que, a qualquer momento, um dos nossos pode ser vítima, pode ser morto pela polícia. Venham para a marcha em nome da juventude negra”, defendeu Maria Luiza Junior, professora e militante do movimento negro em Brasília.
A marcha vai ocupar a Esplanada dos Ministérios no dia 18 de novembro, dois dias antes do Dia Nacional da Consciência Negra. Segundo Gisele dos Anjos Santos, uma das organizadoras, a data foi escolhida para não esvaziar as mobilizações estaduais e municipais do movimento negro no dia 20 de novembro. A organização ainda não tem estimativa do número de participantes da caminhada, mas está levantando informações com movimentos de mulheres negras de todo o país para trazer o maior número de ativistas a Brasília.
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O Feminismo Negro no Brasil

Na origem de um feminismo negro


Publicada em 15:00 17/09/2015 - por: Jarid Arraes
Guerreiras negras, líderes rebeldes em luta pela liberdade. Quantas terá havido na história do Brasil de cuja existência não tivemos notícia? Quantas não chegaram a existir porque este modo de ser não fazia parte das possibilidades de uma garota? E por que não contamos histórias de heroínas assim – das que existiram e das que poderiam ter existido – para inspirar nossos meninos e meninas?
Por Maurício Ayer, no Oca Tupiniquim do Outras Palavras
Certamente perguntas como estas participaram do processo de criação das narrativas de Lendas de Dandara, da poeta Jarid Arraes (Liro Editora Livre, Ilustrações de Aline Valek). Dandara, a companheira de Zumbi, faz parte da mitologia do quilombo de Palmares. Não há evidência histórica de que ela tenha realmente existido, e no entanto sua personagem medrou no saber popular como uma guerreira valente e hábil, capoeirista, capaz de liderar exércitos negros na invasão de engenhos para o resgate de escravos. Estamos no terreno da lenda, como a autora faz questão de delimitar no título de sua obra.
Nascida em Juazeiro do Norte, no Ceará, Jarid aprendeu com seu pai a fazer poesia de cordel. É da tradição desta arte apropriar-se da História para forjar estórias, fundidas no fogo do imaginário, com uma temporalidade multidirecional que muito pouco deve à linearidade da cronologia. De modo que há muito do Palmares histórico nas narrativas de Jarid – que juntas formam essa pequena novela, em episódios dotados de certa autonomia –, mas o seu quilombo poderia situar-se quase que em qualquer ponto na vastidão do tempo-espaço do Brasil agrário e escravocrata. Também fala algo do Brasil pós-abolição, pois hoje, mais que nunca, surgem líderes libertárias negras que poderiam ter em Dandara a sua ancestral mítica.
Por um lado, Lendas de Dandara se apropria da história e mostra a situação dos homens e mulheres escravizados no Brasil, a presença do tráfico humano atlântico, e um pouco da estrutura de funcionamento dos engenhos, com suas casas grandes e senzalas. Também a relação de conflito e negociação do quilombo de Palmares com a sociedade de seu entorno é descrita com base no que os historiadores propõem. Nem apenas uma sociedade guerreira em total isolamento e autonomia, nem apenas um agrupamento submisso à ordem vigente, Jarid soube integrar à sua descrição de Palmares essa complexidade, como por exemplo nas relações comerciais (inclusive para aquisição de armamentos) que os quilombolas estabeleciam com outras comunidades.
Se a autora reconstitui ficcionalmente fatos históricos como as investidas que os palmarenses faziam contra engenhos para romper senzalas e libertar negros, ela nos propõe sonhar com um tipo de evento menos provável: a libertação de um navio negreiro, concedendo-lhes a possibilidade de retornar ao seu continente no comando da embarcação. Também cria a cena de um senhor de engenho que, assaltado numa estrada e submetido por uma guerreira negra livre, se mostra apavorado por não poder contar, ainda que momentaneamente, com o aparato social e bélico que dá sustentação ao seu poder.
A vida em Palmares também é recriada como uma aldeia rebelde e muito bem organizada – algo provável, pela capacidade de defesa e ataque que o quilombo teve. No entanto, o idealismo libertário e o sonho de se tornar um modelo para outros quilombos por todo o território nacional são traços que visitam o terreno da lenda. Meados do século XVII ainda é cedo para uma conjuração independentista e universalista. Hoje, fala-se da possibilidade de que Palmares não poderia ter tido uma estruturação igualitária, uma vez que este não era o modelo conhecido pelos africanos em seu continente – mas o quilombo, como muitos outros Brasil adentro, era francamente multiétnico e talvez pudesse ter uma forte influência indígena em sua estruturação.
Neste cenário já transitivo entre a história e as estórias, Jarid introduz a figura fantástica de uma filha de Iansã, que vem ao mundo para lutar pela liberdade de seus irmãos, cuja vocação é a liderança e o combate. Não é apenas que ela se torna a companheira de Zumbi, sua Dandara enfrenta os limites de sua sociedade e conquista o reconhecimento de seu meritório lugar de líder. É assim que obtém a solidariedade e a admiração sincera de Zumbi. A rigor, ele não lhe concede nada, apenas lhe reconhece o que ela conquistou realizando diversos feitos de ousadia e coragem.
O cuidado com a linguagem é notável e permite uma real construção da empatia com pessoas em situação de extrema violência, como é a escravidão. Ao falar de mulheres e homens aprisionados num porão, por que seria necessário mencionar-lhes, sempre, a cor da pele? Há um grupo de agressores e um grupo de agredidos insurretos, reafirmar sua divisão pela cor da pele ou pela origem é apenas assumir o jogo do dominador. Trata-se de pessoas iguais em natureza, mas vivendo em condições extremamente desiguais. E é isso o que Jarid nos faz ler e imaginar, sem recalques nem travas.
Capoeira e mulheres líderes
Historicamente, não é possível afirmar que a capoeira fosse praticada em Palmares, ou mesmo no século XVII. Há apenas o registro de que os soldados coloniais se espantavam com a habilidade guerreira dos palmarenses, cuja reputação era a de serem muito mais difíceis de vencer do que os ocupantes holandeses – lembrando que Palmares situava-se em uma região hoje situada em Alagoas, que na época ficava na capitania de Pernambuco, portanto próximo à ocupação holandesa. Os quilombolas dominavam técnicas de luta que os tornavam quase imbatíveis, e tiveram que ser esmagados por exércitos em número e armamentos incrivelmente superiores.
As evidências da capoeira são muito mais abundantes no século XIX, como as imagens de Rugendas, notícias de jornal e os registros de polícia – a ponto de a capoeira ter sido oficialmente proibida com o advento da República, quando a escravidão estava findada e um novo aparato de controle social precisou ser montado com foco na população ex-escrava.
Mas a capoeira permanece símbolo da liberdade e da potência negra, com uma presença feminina que se impõe. Um canto muito entoado nas rodas de capoeira fala disso:
Eu conheci mestre Bimba, conheci Canjiquinha e também seu Maré
É é
Eles me disse um dia
É é
Capoeira é pra homem, menino e mulher
É é
Pra menino e mulher
É é
É pra homem e mulher
É é

A evocação dos mestres antigos para reforçar a inclusão de todos na capoeira evidencia essa abertura, mas ao mesmo tempo demonstra uma tensão: é uma característica que precisa ser afirmada e legitimada.
Mas o imaginário da capoeira também se alimentou de outras figuras femininas fortes, como a Ngola (rainha) Nzinga. Esta rainha dos povos ndongo e matamba, na região onde hoje está situada Angola (palavra derivada de seu título de liderança e nobreza), conduziu exércitos contra o invasor português e obteve impressionantes vitórias. Ficou conhecida como a Rainha Ginga, e seu nome estaria na origem da palavra mais essencial para a capoeira.
São notáveis as semelhanças da Nzinga histórica com a Dandara das lendas, e não é impossível que o imaginário popular as tenha incorporado – até porque ambas são “contemporâneas”. Nos dois lados do Atlântico, duas figuras femininas (históricas e míticas) associadas à resistência negra contra o colonizador português e a opressão aos negros. Jarid menciona também Teresa de Benguela, líder que se ganhou notoriedade por sua capacidade administrativa na condução de um quilombo no interior do Brasil.
Apenas como referência, vale mencionar que Nzinga inspira coletivos de mulheres que fazem da capoeira um campo de afirmação da visibilidade e luta das mulheres, com líderes como a Mestre Janja.
Real ou invenção?
Jarid Arraes iniciou a escrita de seu livro partindo da hipótese de que Dandara e sua história não são conhecidas por ser a personagem duplamente excluída do campo vencedor: é negra e mulher, num mundo branco e machista. A síntese do projeto do livro estaria nestas palavras da quarta capa: “Devido à escassez de dados oficiais [a respeito de Dandara], a autora sentiu a necessidade de criar narrativas que pudessem inspirar os leitores e espalhar a imagem de uma guerreira negra forte, heroica e protagonista da própria história”.
Pergunto-me se mais certo não seria exatamente o contrário. Se a personagem de Dandara não teria sido criada por uma necessidade inversa, a de suprir a lacuna de que o herói Zumbi – ele também fusão de mito e história – tivesse uma companheira tão forte e valente quanto ele, capaz de encarnar rebeldia e libertação. Em contraposição a uma mitologizante tendência da história oficial de apagar o que não interessa aos “vencedores”, não haveria uma tendência popular – igualmente mitologizante – de forjar figuras que apontem para um mundo mais completo?
A autora também diz que seu livro foca o público adulto, mas que ele pode ser lido para crianças por um “adulto responsável”, considerando que trata de temas que envolvem violência, como a escravidão e o tráfico de seres humanos. Se está certa quanto ao acompanhamento do adulto, novamente tendo a discordar dela quanto ao público preferencial do livro. Penso que é para se ler para crianças, pois contém todos os elementos para empolgar meninos e meninas e alimentar suas imaginações com referências de justiça, bravura e heroísmo que em geral não se associam a uma menina ou mulher negra.
A constatação é de que o imaginário e o real se constituem mutuamente muito mais do que uma cabeça determinista ousaria reconhecer. Somos parte disso – o que significa que, no exato instante em que deixamos de nos inventar, é porque estamos sendo inventados por alguém. Mesmo que não admitamos, o fato é que não nos é possível deixar de inventar os outros e outras e de ser por eles e elas inventados/as.
Não por outra razão, afirmar que “não sou machista e não sou racista” não me protege totalmente de ser machista e racista. Mesmo assumindo práticas cotidianas não machistas e não racistas. Pois no momento em que eu, seguro de meus princípios, relaxo, é quando abro uma fresta para que o machismo e o racismo ajam por mim. É quando tomo uma atitude ou falo algo que só me restará lamentar depois. Resta a alternativa de ser feminista e antirracista, o que significa lutar perenemente para que o mundo seja menos machista e menos racista, inclusive em minhas palavras e meus atos. É aí que me orgulho de Dandara – como um garoto que na época da guerra fria teria orgulho do Super-homem: é Dandara que dá corpo ao mundo que desejo.