sexta-feira, 30 de abril de 2010

A constitucionalidade das cotas

Apresentação de Sueli Carneiro na Audiência Pública convocada pelo ministro do STF Ricardo Lewandowski sobre a constitucionalidade das cotas para negros no ensino superior em 05 de março de 2010.

Exmo. ministro Ricardo Lewandowski, exmo. ministro Joaquim BarbosaComo todos que me antecederam ressalto inicialmente a importância de sua iniciativa de convocação dessa audiência publica que está permitindo que a pluralidade de vozes que se posicionam sobre as cotas para negros no ensino superior possam ser ouvidas por essa Corte e pelo conjunto da sociedade. Sabemos perfeitamente que essa multiplicidade de atores não estão democraticamente presentes no debate publico sobre o tema, o que torna a sua iniciativa ainda mais relevante.
Quero começar lembrando o Seminário Internacional “Multiculturalismo e Racismo: O papel da ação afirmativa nos Estados democráticos contemporâneos”, realizado pelo Ministério da Justiça em julho de 1996.

Naquela oportunidade, o então vice-presidente Marco Maciel postulou que a realização daquele seminário era um indicativo que o
“Estado brasileiro estaria finalmente engajado em um aspecto que diz respeito às suas responsabilidades históricas, em relação às quais sucessivas gerações da elite política brasileira sempre demonstraram um inconcebível alheamento.”
[1]
E, afirmava o vice-presidente:

“Creio que este é o grande legado da lição de Nabuco, cuja atualidade (...) assenta-se na visão profética de que ‘a escravidão permanecerá por muito tempo como característica nacional do Brasil’, uma vez que a abolição não foi seguida de ‘medidas sociais complementares em benefício dos libertados, nem de qualquer impulso interior, de renovação da consciência pública.” (ibidem p.20)
Assinalava também o vice-presidente:
“É chegada a hora de resgatarmos esse terrível débito que não se inscreve apenas no passivo da discriminação étnica, mas sobretudo no da quimérica igualdade de oportunidades virtualmente assegurada por todas as nossas Constituições aos brasileiros e aos estrangeiros que vivem em nosso território.”[2] (idem)
Coerente com essa leitura de nosso processo histórico foi naquele governo que se iniciaram as primeiras medidas para a promoção social dos negros brasileiros, medidas que se ampliam no governo atual.
Exmo. Ministro, sirvo-me das palavras do hoje senador Marco Maciel do Partido Democrata (DEM) para situar alguns dos desafios inscritos no debate sobre cotas para negros nas universidades brasileiras.
Porque aqueles que as condenam satisfazem-se com essa noção quimérica e virtual de igualdade a que se referiu o senador Marco Maciel.
Tal concepção, intencionalmente, omite no debate público todo o acúmulo teórico empreendido no âmbito da ciência política no sentido da superação da noção abstrata de igualdade que desconsidera a forma concreta como ela se realiza ou não na experiência humana. Dentre vários autores, Norberto Bobbio, por exemplo, nos mostra sob que condições é possível assegurar a efetivação dos valores republicanos e democráticos.
Para ele impõe-se a noção de igualdade substantiva, um princípio igualitário porque ‘‘elimina uma discriminação precedente.’’ (Bobbio, 1992: 71).
[3]
Bobbio compreende a igualdade formal entre os homens como uma exigência da razão que não tem correspondência com a experiência histórica ou com uma dada realidade social o que implica que
“na afirmação e no reconhecimento dos direitos políticos, não se podem deixar de levar em conta determinadas diferenças, que justificam um tratamento não igual. Do mesmo modo, e com maior evidência, isso ocorre no campo dos direitos sociais.” (idem)
No entanto, essa exigência de reconhecimento das diferenças assinalada por Bobbio e da necessidade de enfrentamento objetivo dos obstáculos à plena realização do princípio da igualdade são estigmatizados, por alguns setores no debate nacional, como racialização das políticas públicas por referirem a negros, sabidamente exposto a processos de exclusão de base racial.
No entanto de acordo com o senador Marco Maciel,

"Se o Estado e a sociedade não caminharem juntos na superação dessa odisséia vamos transformar os dispositivos da Carta de 1988 (artigos 3º, 5º e 7º), no que respeita a discriminação, apenas em novas e melhoradas versões da Lei Afonso Arinos, (...) isto é, em postulados ideais e utópicos de escassos efeitos práticos. Prossegue o senador afirmando que "as conquistas jurídicas, por isso mesmo, tem de ser seguidas de conquistas econômicas, capazes de reverter a crença de que o sucesso, a ascensão e a afirmação dependem apenas do esforço individual na superação do preconceito. " (ibidem, p.21)
Aqueles que as condenam compreendem que elas teriam o poder de ameaçar os fundamentos políticos e jurídicos que sustentam a nação brasileira, ferir o princípio do mérito, colocar em risco a democracia e deflagrar o conflito racial. Poderosas essas cotas!
Contra esses argumentos exmo. ministro o senador Marco Maciel vem novamente em meu socorro. Segundo ele,

“(...) medidas compensatórias em favor dos negros não representam apenas uma etapa da luta contra a discriminação, mas o fim da era de desigualdade, da exclusão, se pretendemos uma sociedade igualitária e mais justa.” (idem)
Indo além afirmou o vice-presidente que:
“O caminho da ascensão social, da igualdade jurídica, da participação política – vale dizer, o fim da discriminação – terá de ser cimentado pela igualdade econômica que, em nosso caso, implica o fim da discriminação dos salários, maiores oportunidades de emprego e participação na vida pública. Nesse sentido parece-me que o papel da educação será essencial.” (idem)
Aqueles que as condenam, utilizam-se da retórica da diversidade, da miscigenação para negar aos negros o direito de apresentar à sociedade uma agenda de reivindicações específicas derivada de sua peculiar experiência histórica. No entanto, e mais uma vez recorrendo ao senador Marco Maciel afirmo com ele que:
"A riqueza da diversidade cultural brasileira não serviu, em termos sociais senão para deleite intelectual de alguns e para demonstração de ufanismo de muitos. (ibidem, p.19)
Por fim, aqueles que as condenam servem-se dos estudos genéticos para negar a existência das racialidades historicamente construídas. Nesse caso ofereço breve descanso ao senador Marco Maciel porque, felizmente, temos precedente animador oferecido por essa Corte.

O caso Siegfried Ellwanger, condenado pelo crime de racismo por edição de obra anti-semita é emblemático nessa direção. Ele ofereceu a oportunidade para que o STF debatesse e examinasse o sentido da noção de raça.

Na ementa do acórdão dessa ação o STF explicita que:
"A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Deste pressuposto origina-se o racismo, que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista" .
As diversas manifestações dos ministros nesse caso,reafirmaram com absoluta pertinência que a racialidade não está assentada em determinações biológicas. O excelentíssimo ministro Gilmar Mendes defendeu que a Constituição compartilha o sentido de que “o racismo configura conceito histórico e cultural assente em referências supostamente raciais, incluído aí o anti-semitismo.”

Em consonância, o então ministro do STF, Nelson Jobin recusou o argumento da defesa de Ellwanger segundo a qual judeus seriam um povo e não raça e portanto não estariam ao abrigo do crime de racismo como disposto na Constituição. Por sua vez, a ministra Ellen Gracie, cunhou uma interpretação da maior importância para o entendimento das relações raciais no Brasil. Segundo o seu entendimento, “é impossível, assim me parece, admitir-se a argumentação segundo a qual se não há raças, não é possível o delito de racismo.”

Exmo sr. ministro
- se essa Corte entende que pode haver racismo mesmo não havendo raças,
- se essa Corte também entende que o racismo está assentado em convicções raciais, que “geram discriminação e preconceito segregacionista”,
- se todas as evidências empíricas e estudos demonstram o confinamento dos negros nos patamares inferiores da sociedade e,
- se a inferioridade social não é inerente ao ser negro posto que raças biológicas não existem, então esta persistente subordinação social, só pode ser fruto do racismo que como afirma a ementa do referido acórdão, repito, "gera a discriminação e o preconceito segregacionista”. Isto requer, portanto, medidas específicas fundadas na racialidade segregada para romper com os atuais padrões de apartação.

Exmo. ministro, entendemos que o que está em jogo no debate sobre as cotas, são dois projetos distintos de nação. Em cada um deles, como essa audiência tem demonstrado, encontra-se negros e brancos de diferentes extrações sociais, de campos políticos e ideológicos semelhantes ou concorrentes.

O primeiro desses projetos esta ancorado no passado. Sobre esse passadismo o psicanalista Contardo Calligaris empreende a seguinte reflexão:

"Em meus primeiros contatos com a cultura brasileira, acreditei inevitavelmente ter encontrado o paraíso de uma democracia racial. Não era o primeiro, como se sabe, a confundir o Brasil como um paraíso terrestre.
Mas essas sensação inicial não demorou muito tempo, pois logo tive a oportunidade, ao me estabelecer no Brasil, de analisar alguns pacientes negros. Bastou para descobrir imediatamente que minha impressão de uma paradisíaca democracia racial devia ser perfeitamente unilateral. Meus pacientes não eram militantes do movimento negro, e - com uma só exceção - nem tematizavam, por assim dizer, sua "negritude" como algo de imediatamente relevante em suas vidas. Apesar disso, as histórias que se desdobravam para meus ouvidos todas testemunhavam justamente um constrangimento, senão de um sofrimento social ancestral ligado ao ser negro nesta sociedade.
Restava-me perguntar de onde surgia minha impressão - unilateral, então - de democracia racial. Pergunta que pode ser estendida: de onde surge, em tantos brasileiros brancos bem intencionados, a convicção de viver em uma democracia racial? Qual é a origem desse mito? A resposta não é difícil: o mito da democracia racial é fundado em uma sensação unilateral e branca de confronto nas relações inter-raciais. Esse conforto não é uma invenção. Ele existe de fato: é o efeito de uma posição dominante incontestada. Quando eu digo incontestada, no que concerne a sociedade brasileira, quero dizer que não é só uma posição dominante de fato - mais riqueza, mais poder. É mais do que isso. É uma posição dominante de fato, mas que vale como uma posição de direito ou seja, como efeito não da riqueza, mas de uma espécie de hierarquia de castas. (...) a desigualdade no Brasil é a expressão material de uma organização hierárquica. Ou seja, é a continuação da escravatura. (...) Corrigir a desigualdade, que é herdeira direta, ou melhor, continuação da escravatura, no Brasil, não significa corrigir os restos da escravatura. Significa finalmente aboli-la.”[4]

Calligaris[5] conclui que:

"Sonhar com a continuação da pretensa 'democracia racial brasileira' é aqui a expressão da nostalgia do que foi descrito antes, ou seja, de uma estrutura social que assegura a tal ponto o conforto de uma posição branca dominante que o branco – e só ele - pode se dar ao luxo de afirmar que a raça não importa. (ibidem, p. 245)

O segundo projeto de nação dialoga com o futuro. Os que nele apostam, acreditam que o país que foi capaz de construir a mais bela fábula de relações raciais é capaz de transformar esse mito numa realidade de conforto nas relações raciais para todos e todas. Porém isso só será possível pela ação intencional da sociedade brasileira e especialmente de suas mais nobres instituições. Dentre todas, a mais alta Corte do país, é aquela que pode aportar a maior contribuição a esse processo e reverter o vaticínio proferido por Joaquim Nabuco sobre a perenidade da escravidão como característica nacional, do que nos dá testemunho atual Contardo Calligaris.

Os que vislumbram o futuro acreditam, ainda, que se as condições históricas nos conduziram a um país em que a cor da pele ou a racialidade das pessoas tornou-se fator gerador de desigualdades essas condições não estão inscritas no DNA nacional, pois são produto da ação ou inação de seres humanos e por isso mesmo podem ser transformadas, intencionalmente, pela ação dos seres humanos de hoje.

É o esperamos dessa Suprema Corte, que ela seja parceira e protagonista de um processo de aprofundamento da democracia, da igualdade e da justiça social. E num esforço cívico de tamanha envergadura, as cotas para negros, mais do que uma conquista dos movimentos negros , são parte essencial da expressão da vontade política da sociedade brasileira para corrigir injustiças históricas e contemporâneas que permitem que talentos, capacidades, sonhos e aspirações sejam frustrados por processos de exclusões que comprometem o nosso processo civilizatório.

O STF pode ofertar à sociedade brasileira segurança jurídica para a criação de um círculo virtuoso de mudanças em contraposição ao círculo vicioso estabelecido pelas hierarquias instituídas com base em raça, cor e aparência.
Desse circulo vicioso nos diz o senador Marco Maciel,
"Terminamos todos escravos do preconceito, da marginalização, da exclusão social e da discriminação que caracterizam, ainda hoje, o dualismo social e econômico do Brasil. (ibidem, p.19)
Exmo. ministro, milhões de brasileiros e brasileiras depositam nessa Corte as esperanças de que a sua decisão em relação às cotas para negros nas universidades seja uma sinalização para a sociedade forte o suficiente para tocar mentes e corações e transformar sensibilidades que se habituaram à exclusão em agentes ativos da construção de uma verdadeira democracia racial. Isso é uma urgência histórica pois “não poderemos ser o que podemos e devemos ser continuando a ser o que somos.”

Muito obrigada

[1] Maciel, Marco. Joaquim Nabuco e a Inclusão social, p. 19. In: Anais do Seminário Internacional Multiculturalismo e Racismo: O Papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos. Brasília, Ministério da Justiça/Secretaria Nacional de Direitos Humanos, 1997
[2] Grifos nossos
[3] BOBBIO, N. A era dos direitos. Rio de Janeiro: 1992. 71 p
[4] Calligaris, Contardo. Notas sobre os desafios para o Brasil. In: Anais do Seminário Internacional Multiculturalismo e Racismo: O Papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos. P. 243/244. Brasília, Ministério da Justiça/Secretaria Nacional de Direitos Humanos, 1997.


[5] Para ler o artigo completo


acesse: http://www.geledes.org.br/afrobrasileiros-e-suas-lutas/notas-sobre-os-desafios-para-o-brasil.html

Inventores Negros Revista Afro

Revista Afro
Inventores negros
Conheça alguns dos negros que fizeram toda a diferença para a sociedade com seu inventos.

Imagine o mundo sem semáforos ?
Sem dúvida, a invenção de um negro mais visível, são os semáforos. Garret Morgan, um afro-americano (nascido em Kentucky, EUA, em 4 de março de 1877), inventou o sistema automático de sinais de trânsito em 1923, e depois vendeu os direitos à corporação General Electric por 40 mil dólares.
Morgan, o sétimo de 11 irmãos, só tinham uma educação escolar elementar, mas era extremadamente inteligente. Começou sua vida de trabalhador como técnico de máquinas de coser e rapidamente inventou um sistema para aperfeiçoar as máquinas, que vendeu em 1901 em menos de 50 dólares.
Morgan também inventou a primeira máscara de gás em 1912, pela que obteve uma patente do governo norte-americano. Seguidamente criou uma companhia para fabricar as máscaras. O negócio inicialmente foi bom, sobretudo durante a I Guerra Mundial, mas quando seus clientes descobriram que ele era negro, as vendagens começaram a diminuir.
Morgan tentou enganar seus clientes racistas inventando um creme que se aplicava para alisar o cabelo e passar por índio da reserva Walpole, no Canadá. Morreu em 1963, aos 86 anos. Outro dos grandes inventores negros foi Elijah McCoy. Tinha nascido em 2 de maio de 1843 em Colchester, Ontario, Canadá. Seus pais tinham escapado da escravidão da América do Sul e foram morar no Canadá com suas 12 crianças.
Sendo jovem Elijah foi bom para a mecânica. Depois de estudar em Edimburgo (Escócia), regressou ao Canadá, mas não podia encontrar trabalho. Terminou nos Estados Unidos, onde conseguiu emprego como operário ferroviário em Detroit, Michigan. Era o encarregado de engordurar as maquinarias.
McCoy decidiu desenvolver um sistema para engordurar que não fizesse parar o funcionamento das máquinas e em 1872 inventou um sistema de gotejamento para máquinas de vapor que permitiu engordurá-las durante a marcha.
Em 1929, quando McCoy morreu, tinha mais de 50 patentes a seu nome, inclusive, uma mesa de ferro e um rociador de grama. Seu dispositivo para engordurar as máquinas de vapor cimentou a revolução industrial do século 20.
De volta a casa na África, o cientista ganês, Raphael E. Armattoe (1913-1953), candidato ao Prêmio Nobel de Medicina em 1948, encontrou a cura para a doença do verme da água da Guiné com sua droga Abochi na década de 1940. Ele também fez uma extensa investigação sobre as diferentes espécies de ervas e raízes africanas de uso medicinal

Só nos Estados Unidos, milhares de inventores e cientistas negros têm contribuído enormemente ao desenvolvimento nacional, além do mundial, sem nenhum reconhecimento. Esta é uma pequena mostra de inventores negros dos Estados Unidos na era moderna:
Em medicina, Charles R. Drew foi o pioneiro no desenvolvimento do banco de sangue. Em 1940, seu trabalho com o plasma e armazenagem abriu o caminho para o desenvolvimento dos bancos de sangue nos Estados Unidos. Em 1935, o Dr. William Hinton publicou o primeiro manual médico escrito por um afro-americano, baseado em sua investigação da sífilis.
O físico Lloyd Quarteman jogou um papel transcendental na equipe científica norte-americana que desenvolveu o primeiro reator nuclear na década de 1930 e iniciou a era atômica no mundo. Outro físico, Roberto E. Shurney, desenvolveu os pneumáticos de malha de arame para o robô da Apolo XV que tocou a superfície da lua em 1972.
George Washington Carver, um gênio agrícola, desenvolveu novos métodos de cultivo que salvaram a economia do sul dos Estados Unidos na década de 1920. Em 1927 fez imensas melhoras ao processo de fabricação de pinturas e colorantes. Também investigou ampliamente a terra e as doenças das plantas e desenvolveu 325 produtos derivados do amendoim, entre eles tintas, alimentos e produtos cosméticos.
Jan Ernst Matzeliger (1852-1889) inventou a ‘máquina sem fim’ que impactou grandemente na indústria dos sapatos do mundo. Obteve uma patente do governo em 1883. após vendeu os direitos à firma Consolidated Hand Method Lasting Machine Co. Quando morreu, em 1889, tinha outras 37 patentes a seu nome. Foi honrado pelos Estados Unidos em 1992 com um selo de correios com seu retrato.
O Dr. Ernest E. Just (1883-1941) estudou a fertilização e a estrutura celular do ovo antes da I Guerra Mundial. Ele deu ao mundo a primeira visão da arquitetura humana ao explicar como trabalham as células.
Granville T. Woods (1856-1910) inventou um novo transmissor do telefone que revolucionou a qualidade e distância à que podia viajar o som. A companhia de telefones Bell comprou a patente de Woods, cujo trabalho mais memorável foi a melhora que logrou para os trens.
Primeiramente, ele inventou o “sistema de telegrafia ferroviário”, que permitiu enviar mensagens de trem a trem, mas em 1888 melhorou seu invento com um sistema que permitiu eletrificar os trens. Mais? A lista é inesgotável. Vejamos alguns outros inventores negros.
Richard Spikes desenvolveu a caixa de câmbios automáticos para os automóveis em 1932. George Carruthers, um astro-físico da NASA, desenvolveu a câmera remota ultravioleta que se usou na missão da Apolo XVI e que permitiu ao mundo ter uma visão das crateras da lua na década de 1960. Sua combinação de telescópio e câmera é ainda usada nas missões dos transbordadores.
Em 1986, a Dra. Patricia E. Bath, uma oftalmologista, inventou um dispositivo laser que tem se usado desde então na cirurgia de cataratas.
Em 1989 o Dr. Philip Emeagwali, um imigrante nigeriano nos Estados Unidos, realizou o cálculo de computador mais rápido do mundo, uma assombrosa operação de 3,1 bilhões de cálculos por segundo. Seu aporte tem mudado a maneira de estudar o aquecimento global e as condições do tempo e também tem ajudado a determinar como o petróleo flui sob a terra.
O Dr. Daniel Hale Williams foi primeiro em realizar, em 1893, uma operação de coração num homem. O químico Percy L. Julian, “um dos maiores cientistas do século 20″, segundo a revista Ébano, abriu o caminho para o desenvolvimento do tratamento do mal de Alzheimer e do glaucoma com seus experimentos em 1933.
“Sua investigação na síntese da fisostigmina, uma droga para tratar o glaucoma, determinou que melhora a memória dos pacientes do mal de Alzheimer e serviu como antídoto do gás nervoso”, segundo Ébano.
Benjamim Banniker foi o primeiro inventor afro-americano notável. Ele fez o primeiro relógio nos Estados Unidos e experimentou em astrologia. Depois, foi assistente do francês La Flan, que planejou a cidade de Washington.
Quando La Flan deixou o país desencantado com os norte-americanos, Banniker recordou os planos e virou o verdadeiro responsável do desenho da cidade, uma das poucas dos Estados Unidos com ruas suficientemente amplas como para permitir o passo de dez automóveis ao mesmo tempo.
Que o mundo um dia de o devido valor aos inventores negros.
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Malcolm X América

Malcolm X América
por Adriana Maximiliano


Muçulmano, negro e revolucionário, ele pregou a luta armada contra os brancos americanos. Depois, brigou com seus velhos mentores, flertou com o socialismo e adotou um discurso menos racista. Acabou morto com 14 tiros num crime que continua sem solução, 40 anos depois
Ele foi registrado como Malcolm Little, caiu no mundo com o apelido de Red, ficou conhecido como Malcolm X e morreu como El-Hajj Malik El-Shabazz. Em todas as fases de sua vida, ele conviveu com ameaças, atentados e ódio racial. Em 21 de fevereiro de 1965, às 15h10, a história do líder americano que lutava pelos direitos dos negros chegou ao fim com 14 tiros: Malcolm foi assassinado diante de uma platéia que incluía sua mulher e três de suas quatro filhas, num teatro no Harlem, em Nova York. Três homens ligados a uma organização religiosa da qual Malcolm foi líder durante anos, a Nação do Islã, foram presos, mas nunca ficou esclarecido quem planejou o crime.
Quarenta anos depois, o historiador americano Manning Marable, professor da Universidade de Columbia, acredita ter revelações importantes sobre a vida de Malcolm que levantam novas questões sobre o caso. Marable pesquisa essa história há uma década e prepara um livro sobre o assunto. Mas antes quer ter acesso aos arquivos secretos do FBI, a polícia federal americana. “Milhares de documentos sobre Malcolm X continuam sob sigilo”, diz o historiador.
Segundo ele, no entanto, muito da imagem que hoje temos de Malcolm está errada e a culpa é do livroAutobiografia de Malcolm X, de Alex Haley, lançado em 1965. O livro está repleto de cortes e grande parte das polêmicas idéias de Malcolm foram ignoradas: “Eu li uma carta de Haley falando sobre a visão anti-semita de Malcolm e dizendo que retirou as declarações mais ofensivas sobre isso do livro”, afirma Marable. “Muitas de seus ex-colegas e amigos ainda se autocensuram ao falar sobre ele e suas idéias.”
O historiador americano alega ainda que Haley, que morreu em 1992, foi censurado pelo FBI. “O livrosurgiu a partir de um artigo sobre os muçulmanos americanos que Alex Haley e Alfred Balk escreveram em 1963 para uma revista de Nova York. O que pouca gente sabe é que Balk havia feito um acordo com agentes do FBI: em troca de informações sobre a Nação do Islã, os dois fariam o artigo de maneira a isolar a organização das demais correntes da sociedade negra da época”, diz Marable.
Para completar, os três capítulos finais do livro original não foram publicados, por opção de Haley, e hoje pertencem a um advogado de Detroit, que pagou 100 mil dólares por eles. Marable teve acesso ao material e diz que, entre outras coisas, ele revela um Malcolm politizado, com um discurso alinhado com a esquerda internacional e revolucionária dos anos 60. “Fica claro, ainda, seu plano de reunir os negros muçulmanos, que ele liderava e que, por muito tempo, defenderam a separação entre negros e brancos na América, com os líderes cristãos integracionistas encabeçados por Martin Luther King.
“Haley difundiu a imagem de Malcolm X como queria o FBI”, diz Marable. Seu livro vendeu milhões de cópias mundo afora, virou leitura obrigatória em escolas americanas e quando virou filme, dirigido por Spike Lee, em 1992, rendeu o Oscar de Melhor Ator a Denzel Washington. “Ali, ele é apenas um homem movido pelo ódio, um militante racista e violento. Suas idéias políticas de integração entre brancos e negros, suas críticas à sociedade americana que privilegiava cada vez menos gente ficaram como uma lembrança desbotada”. Para Marable, Malcolm é um dos líderes mais mal-entendidos da história americana e desvendar sua morte é apenas o primeiro passo para entender quem foi o homem por trás de Malcolm Little, Red, Malcolm X e El-Hajj Malik El-Shabazz.
Pequeno
Malcolm Little nasceu em 19 de maio de 1925, em Omaha, estado de Nebraska. Mulato, por trás da cor de sua pele, ele guardava uma tragédia: sua avó engravidou de sua mãe depois de ser estuprada por um homem branco que nunca foi preso, sequer acusado de crime. O quarto dos oito filhos da dona de casa Louise e do pastor da igreja batista Earl Little, Malcolm aprendeu o que era racismo antes mesmo de pronunciar a primeira palavra. Em 1926, a família teve de se mudar às pressas depois que membros da Legião Negra, uma espécie de versão local da Ku Klux Klan, botaram fogo na casa da família. O atentado foi uma represália aos sermões de Earl em favor dos direitos dos negros.
Os Little fugiram. Primeiro para Wisconsin, e, três anos depois, para uma fazenda no Michigan. Lá, seus vizinhos, todos brancos, venceram uma ação na justiça exigindo que eles se mudassem para outra região onde só moravam negros. Os Little se recusaram e tiveram a casa novamente incendiada. O pai de Malcolm pediu ajuda à polícia e acabou preso, acusado de forjar o incidente para fraudar o seguro. A rixa entre vizinhos só acabou em setembro de 1931. E, mais uma vez, de forma trágica: o corpo de Earl Little foi encontrado mutilado nos trilhos de uma estrada de ferro. Não houve investigação criminal e as autoridades concluíram que ele havia cometido o suicídio.
Louise resistiu o quanto pôde para manter a família unida, mas não era raro faltar comida em casa. Dois dias antes do Natal de 1938, ela sofreu um colapso e foi internada num hospital para doentes mentais, de onde só sairia 26 anos depois. Malcolm ficou sob a guarda de um casal de brancos, os Swerlin, num lar de detenção juvenil. “Eles gostavam de mim como de seus animais”, disse Malcolm, numa entrevista publicada na revista Playboy, em 1963.
Vermelho
Com 15 anos, Malcolm abandonou os Swerlin, a escola e foi morar com uma irmã mais velha em Boston. Depois de viver um tempo de bicos, arrumou emprego no trem para Nova York. Ali, ele passou a freqüentar os bares do Harlem (o mítico bairro de maioria negra) e conviver com os criminosos locais, seus carros e prostitutas. “Nessa época, ele não parecia ter orgulho de ser negro”, afirmou Haley. “Esticava os cabelos com produtos químicos e namorava mulheres brancas. Era conhecido como New York Red ou simplesmente Red (“vermelho”), por causa da cor de seus cabelos castigados por alisantes.”
Em 1942, aos 17 anos, soube que um grupo de trapaceiros do Harlem precisava de um ajudante e entrou para o crime: tráfico de drogas, roubo, prostituição e jogos. Detido duas vezes em Nova York, ele voltou para Boston e criou sua própria gangue para roubar casas. Foi uma má idéia: apenas duas semanas nessa vida e ele foi pego tentando vender um relógio roubado. Red foi condenado a dez anos de cana.
Foi na cadeia, em 1947, que ele ouviu falar pela primeira vez da Nação do Islã. Wilfred, seu irmão mais velho havia aderido à religião e levado consigo cada um dos Little. Foram as cartas da família que apresentaram a Red aquela “religião natural para os homens negros”, como escreveu Wilfred em carta para o irmão. Mas foram os textos de Elijah Muhammad, líder da Nação do Islã, que converteram Red. Dizia Elijah que Deus era negro e se chamava Alá. “O negro americano deve ser reeducado. O Islã dará a ele as qualificações para sentir orgulho, e não vergonha ao ser chamado de negro.” Em seu discurso racista e segregacionista, Elijah defendia países separados para brancos (“os demônios da humanidade”) e para os negros ou afro-americanos, como preferia.
Red foi desaparecendo aos poucos. Cortou os cabelos, deixou o linguajar de gângster e entrou para o time de muçulmanos da prisão. No dia 7 de agosto de 1952, após seis anos e meio na prisão, Malcolm foi solto.
“X”
Um mês depois de sair, Malcolm foi aceito na Nação do Islã e passou a se apresentar sem o sobrenome “Little”. “Esse nome foi dado aos meus ancestrais por aqueles que os fizeram escravos e recuso-me a usá-lo”, dizia Malcolm, que adotou o “X”, para simbolizar sua identidade desconhecida. O novo Malcolm, como também passou a se apresentar, surgiu numa hora e num país conturbados. Em diferentes estados americanos, principalmente do sul, onde cenas de violência contra negros eram comuns, a segregação racial estava na lei e limitava o acesso dos negros às escolas e aos transportes públicos, por exemplo.
Em 1955, um boicote contra os ônibus em Montgomery, no Alabama, onde Rosa Parks (leia quadro nessa página), uma mulher negra se negou a ceder seu lugar para um branco, iniciou uma série de manifestações populares que ficariam conhecidas como “Movimento pelos Direitos Civis”. Surgiram entidades como Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês), para arrecadar fundos, contratar advogados e atuar politicamente contra as legislações racistas dos Estados Unidos. Mas a luta não foi apenas pacífica como queriam alguns dos líderes, como o mais famoso deles, o reverendo Martin Luther King Jr. (leia na página ao lado). As polícias e tribunais estaduais formados e controlados por brancos não aceitavam mudanças. Em 1954, quando o governo federal obrigou a primeira universidade do sul a aceitar alunos negros, houve quebra-quebra, prisões e assassinatos de militantes negros. Cenas que Malcolm conhecia desde a infância. Mas, dessa vez, ele estava pronto para reagir.
Malcolm X adotou um discurso violento e dizia que o negro precisava reagir diante do branco opressor. Nessa época, ele já não era mais um mero ex-presidiário fanático. Seu carisma e dedicação impressionaram Elijah Muhammad e Malcolm ascendeu rapidamente na hierarquia da Nação do Islã. Em dois anos, comandou a construção de templos em Boston, Hartford e Filadélfia, virou líder do Templo Número 7, no Harlem, e assumiu o posto de porta-voz da organização.
Aos 32 anos, Malcolm X se casou com Betty X, uma freqüentadora do templo no Harlem. Ele era, então, o representante mais famoso da história da Nação do Islã. Sua figura imponente e seus discursos haviam sido fundamentais para o crescimento da organização, que passou de 500 membros para 30 mil em dez anos. Malcolm dizia que as mulheres deveriam cuidar da família, os homens velhos deveriam se dedicar a entender e passar adiante os ensinamentos de Elijah e os jovens seriam treinados para usar a violência contra o inimigo, caso fosse necessário.
E geralmente era. As tensões raciais cresceram e os confrontos com a polícia viraram rotina. Na noite de 27 de abril de 1962, um grupo de policiais matou um membro da Nação do Islã, Ronald Strokes, deixou outro paralítico e cinco feridos ao invadir um templo em Los Angeles. Revoltado, Malcolm X convocou a comunidade negra para protestar nas ruas. Milhares atenderam, cerca de 80 foram presos e 14 feridos, entre eles dois policiais. “Não há nada no nosso livro, o Alcorão, que ensine a sofrer tranqüilo. Nossa religião ensina a ser inteligente, pacífico, cortês, obedecer a lei e respeitar os outros. Mas, se alguém bota a mão em você, mande-o para o cemitério”, disse Malcolm, em 1962.
Seus discursos – cada vez mais concorridos – ficaram bem inflamados. Em dezembro daquele ano, um deles ficou famoso. Do templo simples no Harlem – pouco mais que um púlpito de madeira, cadeiras enfileiradas e uma imagem de Elijah Muhammad na parede – onde só negros podiam entrar, Malcolm falou do orgulho de sua cor e de sua raiva pelo homem branco, o inimigo: “Nós não separamos nossa cor da nossa religião. O homem branco também nunca separou o cristianismo da cor branca. Quando você ouve o homem branco se gabando: ‘Eu sou cristão’, ele está se gabando de ser um homem branco. Minha mãe era cristã, meu pai era cristão. Meu pai era um homem negro e minha mãe era uma mulher negra, mas as canções que eles cantavam na igreja eram feitas para encher seus corações com o desejo de ser branco”.
Com esses discursos, era natural que atraísse a atenção dos órgãos de segurança americanos. “Os membros acreditam que Alá é o ser supremo e afirmam serem descendentes da raça original da Terra. Eles seguem os ensinamentos de Alá como interpretados por Elijah Muhammad, segundo os quais, os membros desta minoria racial nos Estados Unidos não são cidadãos deste país, mas meros escravos e irão continuar assim até que eles libertem a si mesmos destruindo os não-muçulmanos e o cristianismo” , relatou um agente do FBI em um relatório sobre a Nação do Islã.
Ao mesmo tempo que crescia sua popularidade, Malcolm X passou a ser questionado por Elijah e outros líderes da Nação do Islã. A relação azedou quando Malcolm descobriu – e denunciou – que Elijah mantinha relações amorosas secretas com mulheres da organização. Mas o rompimento definitivo aconteceu no fim de 1963. Quando o presidente americano John Kennedy foi baleado, em 22 de novembro, Malcolm X se preparava para fazer um discurso, em Nova York. Ao chegar ao local, recebeu um recado de Elijah Muhammad, pedindo que não comentasse o atentado. Malcolm e os demais líderes negros não gostavam muito do presidente morto, que consideravam omisso em relação ao movimento pelos direitos civis, mas todos concordaram que não era hora de criticá-lo, já que a população estava traumatizada. Todos menos Malcolm X. Perguntado sobre a morte de Kennedy, ele respondeu com ironia: “As galinhas voltam para dormir em casa”, um ditado americano cujo significado se parece com o do nosso “Aqui se faz, aqui se paga”. Ou seja, Malcolm insinuou que Kennedy morreu por conseqüência de seus próprios atos, porque falhou ao combater a violência nos Estados Unidos.
A declaração foi mal recebida, inclusive pela população negra, que se voltou contra a Nação do Islã. Irritado, Elijah ordenou que Malcolm se calasse por 90 dias. “Alguns observadores crêem que Elijah aproveitou-se do momento em que a opinião pública se voltou contra Malcolm, para livrar-se dele”, diz Clayborne Carson, historiador da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Terminado o silêncio, em 8 de março de 1964, Malcolm X falou. E disse que deixaria a Nação do Islã.
Peregrino
Decidido a virar um muçulmano autêntico, Malcolm X viajou para a Arábia Saudita, em abril de 1964, para fazer a peregrinação a Meca. Ali, ele se deu conta de que Elijah Muhammad pregava uma farsa ultrapassada ao dizer que as mulheres deviam ser subservientes e que todos os males dos negros advinham da escravidão na América. Na África, percebeu que o problema não era o homem branco, mas o imperialismo, o sistema político e econômico que permitia que negros pobres fossem explorados por negros ricos. “Durante os últimos 11 dias aqui no mundo muçulmano, eu tenho comido no mesmo prato, bebido do mesmo copo e dormido na mesma cama – enquanto rezo para o mesmo Deus – que seguidores muçulmanos cujos olhos são os mais azuis dos azuis, cujos cabelos são o mais louros dos louros e cujas peles são as mais brancas das brancas. Nós somos todos iguais”, escreveu numa carta para a família. Na volta, ele não era mais Malcolm X, mas El-Hajj Malik El-Shabazz.
E não foi só seu nome que mudou. “Seu discurso assumiu boas doses de críticas ao capitalismo americano e o aproximou de líderes socialistas, como Che Guevara, que Malcolm elogiava por seu caráter revolucionário e anti-imperialista” , diz Carson. Em 1960, ele já havia tido um encontro de meia hora com Fidel Castro e, em 1964, tentou levar Che para uma reunião da recém-fundada Organização da Unidade Afro-Americana, no Harlem. O líder cubano achou que estaria desprotegido e não foi ao encontro, mas mandou uma mensagem, lida pelo próprio Malcolm a um auditório eufórico: “Caros irmãos e irmãs do Harlem, eu gostaria de estar com vocês e Brother Babu, mas as condições atuais não são boas para esse encontro. Recebam calorosas saudações do povo de Cuba e especialmente de Fidel. Unidos, nós vamos vencer”. O Brother Babu, citado por Che, era Abdul Rahman Muhammad Babu, líder socialista africano que virara ídolo no Harlem.
A relação com Elijah Muhammad virou rivalidade. “Apenas aqueles que desejam ser levados ao inferno seguirão Malcolm”, escreveu o novo porta-voz da Nação do Islã, Louis Farrakhan, em dezembro de 1964, no jornal Muhammad Speaks. “Elijah se opõe ao negros americanos ouvirem o verdadeiro Islã, e tem ordenado seus seguidores a aleijar ou matar qualquer um que queira deixá-lo para seguir o verdadeiro Islã”, disse Malcolm numa entrevista para a revista Al-Muslimoon, em fevereiro de 1965.
Alguns dias depois, em 14 de fevereiro, a casa de Malcolm foi incendiada. Sua mulher, que já vinha recebendo telefonemas com ameaças de morte, conseguiu fugir com as filhas. A família acusou publicamente a Nação do Islã. A organização negou e disse que o próprio Malcolm forjara o incêndio. Sobre o caso, nada foi apurado pelas autoridades e Malcolm escreveu ao secretário de estado americano Dean Rusk: “O governo não tem nenhuma intenção de proteger minha vida”.
Mesmo consciente do risco que corria, uma semana depois do atentado, Malcolm foi fazer um discurso, no Harlem. Diferentemente do que ocorria nas reuniões da Nação do Islã, por exemplo, Malcolm não permitia que seus seguranças portassem armas, nem que o público fosse revistado na entrada. Quando ele começou a falar, uma confusão no meio da platéia atraiu a atenção dos guarda-costas e ele ficou sozinho no palco. Das primeiras filas do auditório, alguns homens saíram atirando em sua direção. Malcolm caiu a poucos passos da mulher e das filhas. Foi socorrido, mas era tarde. Baleado 14 vezes, ele chegou morto ao hospital.
Cerca de um ano depois, três homens da Nação do Islã – Talmadge Hayer, Norman 3X Butler e Thomas 15X Johnson – foram presos, acusados de terem atirado em Malcolm. Dois dos presos, Butler e Johnson, sequer estavam no auditório. Ambos tinham álibi e acabaram inocentados. Foram encontrados pedaços de balas de duas armas no corpo de Malcolm, uma pistola calibre 45 e uma 9mm. A primeira foi entregue ao FBI por um segurança de Malcolm, que disse que tirou a arma de Hayer após o tiroteio. A outra nunca apareceu. Em 1977, Hayer declarou que planejou o assassinato com outros quatro muçulmanos que ele conhecia apenas de vista e mal se lembrava do primeiro nome. Um advogado tentou reabrir o caso para tentar identificar esses homens e quem estaria por trás deles, mas não conseguiu. Até hoje não há evidências que liguem o crime à Nação do Islã (leia quadro na página ao lado).
O Departamento de Polícia de Nova York tinha um agente disfarçado entre os seguranças de Malcolm, chamado Gene Roberts, que anos depois foi promovido por ter se infiltrado e ajudado a destruir outra organização, o Partido dos Panteras Negras. Outros policiais disfarçados também estavam no auditório no dia do assassinato. Mas nem eles nem Roberts acrescentaram nada ao processo. Por outro lado, policiais uniformizados que trabalhavam nos comícios de Malcolm em Nova York não entraram no teatro naquele dia. Diriam depois que receberam ordens para ficar do outro lado da rua. Tudo indica que a tragédia já estava anunciada. “Resta saber se ela foi provocada por agentes infiltrados e por que nada foi feito para mudar o desfecho”, afirma o professor Manning Marable.

Heróis da resistência
Os negros queriam igualda deperante a lei. Veja como a lei tratou alguns de seus líderes
Rosa Parks
No dia 1º de dezembro de 1955, Rosa Parks entrou para a história ao se negar a ceder seu lugar num ônibus público para um homem branco, em Montgomery, no Alabama. Ela foi presa por desobedecer a lei de segregação e, em protesto, a comunidade negra decidiu fazer um boicote aos ônibus da cidade a partir da segunda-feira seguinte, dia 5. No mesmo dia, Rosa foi julgada, considerada culpada e condenada a pagar uma multa de 14 dólares. Liderado pelo pastor de uma igreja batista local, Martin Luther King Jr., o boicote durou 381 dias. Até que, em 21 de dezembro de 1956, a Suprema Corte declarou que as leis de segregação de Montgomery eram inconstitucionais. No dia seguinte, Rosa Parks entrou num ônibus pela porta da frente, escolheu um dos primeiros assentos e ficou conhecida como a “Mãe do Movimento pelos Direitos Civis”. Aos 92 anos, ela mora em Detroit.
Medgar Evers
No início dos anos 50, Medgar Wiley Evers conciliava o trabalho de vendedor de seguros com o de ativista da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês), no Mississippi. Quando a Suprema Corte Americana considerou ilegal a segregação nas escolas, em 1954, Evers tentou estudar direito na universidade local, mas não conseguiu. Oito anos depois, ajudou James Meredith a se tornar o primeiro estudante negro da Universidade do Mississippi, um marco para a luta dos direitos dos negros. Evers liderou um boicote contra três comerciantes brancos de Jackson (capital do Mississippi) , que davam dinheiro para os Conselhos dos Cidadãos Brancos, considerado o braço legal da Ku Klux Klan. Acabou assassinado em junho de 1963 em frente a sua casa por um branco racista. O criminoso confesso, Byron De La Beckwith, que havia fundado o Conselho dos Cidadãos Brancos do Mississippi, foi inocentado duas vezes e só no terceiro julgamento, 31 anos após a morte de Evers, foi condenado à prisão perpétua.
Muhammad Ali
No esporte, o herói negro da década de 60 foi Cassius Clay, ou como ficaria conhecido depois, Muhammad Ali. Assim como Malcolm X, ele foi membro da Nação do Islã e ajudou a divulgar os ensinamentos de Elijah Muhammad. Ali foi campeão mundial de boxe profissional pela primeira vez em 1964, aos 22 anos, mas perdeu o título e acabou preso três anos depois, ao se recusar a lutar na Guerra do Vietnã. Polêmico, alegou que a guerra era contra sua religião e que nenhum vietnamita fizera nada contra seus irmãos negros. Recebeu o apoio de grande parte da população americana, negros e brancos. Apenas em 1971, porém, a Suprema Corte dos Estados Unidos voltaria atrás em sua decisão. Em 1974, reconquistou o título mundial e, seis anos depois, se aposentou ao ser derrotado por Larry Holmes. Ele deixou a Nação do Islã em 1975 para se dedicar ao islamismo tradicional. Hoje, aos 63 anos, luta contra o mal de Parkinson.
Martin Luther King Jr.
Por liderar o boicote aos ônibus de Montgomery, Martin Luther King Jr. foi ameaçado de morte e sua casa sofreu um atentado à bomba. Mas King jamais revidou uma agressão na vida. Com suas idéias pacifistas, ele mobilizou multidões, foi preso dezenas de vezes e se tornou o homem mais jovem a ganhar o Prêmio Nobel da Paz (em 1964, aos 35 anos). King era o oposto de Malcolm X. Enquanto este promovia a revolta entre as comunidades urbanas do norte do país, aquele falava sobre integração racial para a população rural do sul. Era óbvio que o discurso “Se você me bater, te bato de volta”, de Malcolm jamais se casaria com o "Sofra em silêncio", de King. Mas, apesar de os dois líderes seguirem rumos, religiões políticas tão diferentes, eles tiveram finais parecidos. Nos últimos anos de vida, descobririam que a luta contra o racismo era uma questão maior, global. Ambos foram mortos a tiros quando tinham 39 anos. No caso de King, num hotel no Memphis, Tennessee, em 1968.
Rubin "Hurricane" Carter
O boxeador Rubin Carter, (apelidado de “furacão”), teve uma carreira vitoriosa como peso-médio e era forte candidato ao título mundial até que, aos 29 anos, foi condenado à prisão perpétua por um crime que não cometeu. A tragédia aconteceu porque Rubin passou de carro perto do local onde três pessoas tinham sido assassinadas, num bar em Nova Jersey, em junho de 1966. Sem nenhuma prova contra ele, Rubin levou a culpa, simplesmente por ser negro. Depois de dez anos na cadeia, ele conseguiu um segundo julgamento – e foi novamente considerado culpado. Mas, graças à biografia que escreveu na prisão, Carter foi solto em 1985. Filho adotivo de um casal de ativistas canadenses, o jovem Lesra Martin, nascido numa comunidade pobre do Brooklin, em Nova York, se identificou com o sofrimento de Carter ao ler o livro. Ajudado por sua nova família, Martin conseguiu reabrir o caso e Carter provou que não era um criminoso, mas uma vítima do racismo. Ele tem 68 anos e mora no Canadá.

Tragédia sem fim
Viúva de Malcolm X também foi morta
Após o assassinato de Malcolm, Betty Shabazz culpou a Nação do Islã pela morte do marido. Em 1994, acusou diretamente Louis Farrakhan (que sucedeu Malcolm como líder da organização). Naquele ano, a segunda das seis filhas de Betty e Malcolm, Qubilah, foi presa tentando contratar um homem para matar Farrakhan. O “matador” na verdade era um agente do FBI. Farrakhan, numa reviravolta e tanto, pagou a fiança e defendeu Qubilah: “A filha de Malcolm foi enganada por gente que quer criar discórdia entre a Nação do Islã e a comunidade negra nos Estados Unidos”, disse. Quatro meses depois, Qubilah e Farrakhan encerraram a questão com um aperto de mãos no Harlem. Em 1995, ela voltaria a aparecer nos jornais ao ser levada para uma clínica para viciados em drogas. Durante sua internação, que duraria dois anos, o filho, chamado Malcolm como o avô, foi viver com a avó Betty. O menino de apenas 12 anos também era viciado e, em junho de 1997, ateou fogo na casa da avó, que sofreu queimaduras em todo o corpo e morreu 22 dias depois. No dia 19 de maio 2004, quando Malcolm X completaria 80 anos, suas filhas inauguraram o Centro de Educação e Memorial Malcolm X e Betty Shabazz, no mesmo local onde elas viram o pai ser assassinado 40 anos atrás.

Saiba mais
Livro
Autobiografia de Malcolm X, Alex Haley, Record, 1992 - O best-seller transformado em filme em 1992 é alvo de críticas da família Shabazz

sexta-feira, 23 de abril de 2010

DISCUSSÃO ACERCA DA INFLUÊNCIA DA PERTENÇA RELIGIOSA

DISCUSSÃO ACERCA DA INFLUÊNCIA DA PERTENÇA RELIGIOSA NA
AFIRMAÇÃO DA NEGRITUDE.

Lwdmila Constant Pacheco¹
¹Mestranda em Psicologia Social pela UFS, bolsista Fapitec.

e-mail: lwdmilaconstant@hotmail.com

Nesse trabalho abordaremos o pertencimento religioso a partir da imersão cultural como
facilitadora de uma consciência histórica e social dos afro-brasileiros, levando em
consideração o caráter cultural da religião, não tendo a intenção de reduzi-la a uma
questão folclórica ou puramente tradicional, porém não sendo foco abordar o sentimento
religioso – a religiosidade. Assim, trataremos da influência do pertencimento à uma
instituição religiosa na afirmação da identidade negra, enfatizando tanto o
pertencimento afro-religioso como o pertencimento evangélico neopentecostais.
Consideramos a função da religião definida por Max Weber, que seria providenciar um
sentido à existência do sofrimento e algum meio para superá-lo ou transcendê-lo. Para
tanto, falaremos um pouco da história da formação do candomblé no Brasil e seu caráter
de resistência religiosa e cultural, e a sua possível função de amparo a uma referência
africana deteriorada, mas necessária ainda a afirmação da negritude. Em contrapartida,
falaremos também, de forma sucinta, sobre a peculiaridade das religiões neopentecostais
no Brasil, ressaltando sua popularidade e poder de coerção, além de questionar a
presença maciça de negros e afro-brasileiros em seus cultos que tanto disputa o campo
religioso com as religiões de matriz africana.
1.1 - Candomblé: religião de resistência.
A história do Brasil e do povo brasileiro está ancorada pelo estigma da
escravidão e pela perseguição, mesmo após a abolição da escravatura, das
manifestações de origem afro-brasileira, principalmente a religião. Levando em
consideração as perseguições sofridas, direta e indiretamente, pelo Candomblé –
primeira religião afro-brasileira institucionalizada, de onde se originaram a maioria das
manifestações folclóricas mais populares – e a sua função de representatividade da
população negra, caracterizamo-lo como religião de resistência não só por ter sido
criado no contexto da escravidão e da proibição de junções comunitárias de cativos para
qualquer finalidade religiosa, mas por ter sobrevivido ao sincretismo e ao tempo,
possuindo ainda a força de retratar a história brasileira com sua herança africana. O
africano se tornou afro-brasileiro ao consagrar o novo território que habitava, fundando
não só seu mundo particular, mas o mundo que hoje conhecemos como Brasil.
Durante o tráfico negreiro, transladaram para o Brasil uma pluralidade de
culturas na forma de memória e de experiência individualizada, consideradas por
Bastide (1986) como fragmentos de culturas desprovidos de institucionalização que lhes
davam expressão. A sociedade afro-brasileira só se constituiu com a criação de
estruturas sociais complexas que acomodassem as múltiplas culturas africanas trazidas
por indivíduos ou grupos de escravizados. A formação de uma comunidade religiosa
afro-brasileira foi um dos fatos que demonstram essa (re) construção cultural à partir do
referencial africano com o intuito de resistência ao sistema escravista opressor, mas
principalmente, como forma de suportar o infortúnio da condição de escravo, sendo a
religião uma alternativa para suportar o cativeiro.
Caracterizado por Verger (1997) o Candomblé é de uma extraordinária
resistência oposta às forças de alienação e de extermínio com que freqüentemente se
defrontavam, surpreendendo a todos aqueles que tentavam justificar a cruel instituição
do tráfico de escravos com o argumento de que as atividades dos negreiros constituíam
o meio mais seguro e mais desejável de conduzir à Igreja as almas dos negros, o que
seria mais recomendável do que os deixar na África, onde se perderiam num paganismo
degradante ou estariam ameaçados pelo perigo da sujeição herética às nações
estrangeiras, para onde seriam, no mínimo, deploravelmente enviados.
A constituição e sobrevivência histórica das Casas de Axé, mais
especificamente, os terreiros de Candomblé no Brasil do racismo, da perseguição à seus
cultos e da intolerância para com as religiões de matriz africana demonstra o quão
importante representa a presença do sagrado para a histórica dos negros na diáspora,
configurando-se num forte indicativo de resistência e sobrevivência cultural, onde o
sincretismo e ao mesmo tempo o desafio à imposição religiosa possibilitou a
reconstrução cultural e social do negro, preservando e ressignificando seus vínculos
identitários com a África e o Brasil.
1.1.1 - Ressignificando a negritude.
O Brasil é permeado de reminiscências africanas, nas cores, nas manifestações
culturais, nos tipos humanos e na sua história e, por esse motivo, a religião hoje
conhecida como Candomblé, ou mais popularmente como “macumba”, representa um
oásis vivo dessa africanidade, mesmo tendo o Candomblé nascido em terras brasileiras.
Esse surgimento da religiosidade afro-brasileira e sua manutenção foram relevantes para
a sobrevivência social e psicológica dos africanos e seus descendentes, já que como
ressalta Eliade (2001) a manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo, e só
a partir do exercício de uma religiosidade que mantivesse elementos essenciais
africanos e criasse outros adaptativos para o contexto brasileiro é que os cativos
poderiam vivenciar esse espaço não exclusivamente como profano, sofrido, mas tendo
um ponto de referência sagrado pelo qual pudesse resistir, fundando a si e a seu novo
mundo.
Entendemos que a construção e a manutenção da instituição do Candomblé para
uma formação identitária dos afro-brasileiros são de suma importância, possuindo a
função de saciar “a sede de ser”, definida por Eliade (2001) como sede ontológica, ou
melhor, impedir o massacre e morte ontológica forçada da escravidão; hoje sendo
aparato de resistência cultural, de sobrevivência à perseguição e a pluralidade religiosa.
Durante a escravidão acontecia a chamada “morte social” (Patterson in Parés,
2006) onde o africano escravizado era “coisificado” (QUEIROZ, 1990), identificado
pelo nome do seu proprietário e pelo nome da nação designado pelos traficantes, muitas
vezes não sendo sua nação de origem, mas o porto ao qual foi embarcado para o Brasil.
Também era adjetivado pelo seu valor comercial, que dependia de sua idade, sexo,
condições físicas e habilidades. Sua identidade pessoal, assim, se não totalmente
suprimida ou substituída, era severamente relativizada por outra gerada e imposta de
fora (PARÉS, 2006).
Segundo Parés (2006), a nível individual, ou no convívio com os parceiros de
cativeiro, alguns traços da identidade pessoal original podiam ser mantidos, mas no
cotidiano das relações com a sociedade mais ampla, a nova identidade imposta pela
escravatura se mostrava a forma mais operacional de se apresentar aos outros. Porém,
paralelamente à dinâmica de identificação externa exercida pela classe dominante, os
africanos e seus descendentes foram criando novas formas de solidariedade e de
identidade coletiva, na medida em que as novas circunstâncias o permitiam: No
convívio da senzala e dos grupos de trabalho da cidade, a partir do reconhecimento de
semelhanças lingüísticas e culturais e da identificação de lugares de procedência
comuns ou próximos, novos grupos mais amplos foram ganhando uma autoconsciência
coletiva. O reconhecimento de semelhanças para com alguns indivíduos reforçava a
diferença para com outros como propõe Silva (2003): identidade e diferença são
resultados de atos de criações lingüísticas, sendo produto da cultura e dos sistemas que a
compõem. O africano diferenciava-se do negro nascido no Brasil, que por sua vez
diferenciava-se do mestiço de branco e negro. À partir dessa diferenciação
simplificadamente representada aqui (pois há outros exemplos de diferenciações mais
complexas, como dentre os africanos e suas respectivas etnias) é que se constitui a
identidade multidimensional, isto é, a identidade que se modifica constantemente a
medida que se toma um referencial diferente para a definir.
Da mesma forma que se diferenciavam cativos de etnias diferentes,
possibilitando entre esses uma coesa formação grupal, também os ritos religiosos se
diferenciavam por práticas herdadas de determinadas regiões africanas. A língua no
Calundu (manifestação religiosa de origem africana que deu origem ao Candomblé e
posteriormente à Umbanda) e no Candomblé do século XIX é o principal elemento de
diferenciação e expressão, seguidos da dança, canto e instrumentos musicais. A
demarcação de etnia dentro do contexto religioso foi tão forte, que mesmo após
dissolverem-se os laços com as nações africanas para os descendentes de africanos, essa
denominação de contraste permanece até hoje nas Casas de Axé. O termo nação no
Brasil perdeu sua conotação originária, de referência a uma origem africana objetiva,
para se transformar num conceito exclusivamente teológico, passando a apontar padrões
ideológicos e rituais dos terreiros de Candomblé, isto é, designa uma modalidade de rito
ou uma formação organizacional definida em bases religiosas.
O Candomblé surgiu de um processo de institucionalização das crenças trazidas
da África com novas crenças herdadas (dos indígenas) ou criadas no Brasil, e sua
formação afrontou a sociedade escravista que, numa de suas justificativas para a
escravidão, alegava que estava fazendo um ato de bondade ao desterrar o africano da
terra em que praticava cultos pagãos e demoníacos batizando-os como católicos.
Burlando, pois, as expectativas e lei da época, o cativo e posteriormente, o negro liberto
executava suas crenças e valores o que, mais tarde, foi amplamente assimilado pela
cultura nacional. O Brasil e sua religiosidade são mesclados com as crenças africanistas
ou afro-brasileiras.
1.1.2 - Pertencimento Religioso.
Segundo Gomes (2005), a identidade para se constituir realidade pressupõe uma
interação. A idéia que o indivíduo faz de si mesmo é intermediada pelo reconhecimento
obtido dos outros, em decorrência de sua ação, nunca acontecendo de forma isolada,
dependendo das relações dialógicas estabelecidas com estes. A identidade pessoal só se
afirma quando há a identificação do indivíduo com o grupo ao qual pertence, já que a
identidade grupal tem poder mobilizador (MUNANGA, 2004). Sendo que esta
identificação se dá através de elementos comuns entre seus membros, o que fortalece o
conceito da diversidade e, assim, o da injustiça social. A identidade negra é construída
no indivíduo a partir de peculiaridades do seu grupo, como: o passado histórico
escravista, sua situação como membros de um grupo estigmatizado, racializado e
excluído das posições de comando na sociedade cuja construção contou com seu
trabalho gratuito, como membros de um grupo étnico-racial que teve sua humanidade
negada e sua cultura inferiorizada. Assim, uma forma de construção da identidade
individual através da mobilização e coesão grupal foi pelo uso, na época da escravidão,
de metáforas de parentescos. Os africanos que vinham na mesma embarcação
(tumbeiros) para o Brasil se identificavam como malungos, palavra que significa
‘irmãos’. No caso de pessoas da mesma etnia, também se fazia uso da nomenclatura de
parentesco. Por sua vez, as atividades de caráter religioso, nas associações e rituais,
providenciaram formas institucionais para reforçar esse sentimento de comunalismo e
de identificação com uma comunidade étnica. As irmandades católicas, espaço
reservado aos negros escravizados para professarem a nova fé cristã, eram locais onde a
construção desse parentesco de nação se iniciou mais fortemente, com seus reinados e
folias organizadas de acordo com as nações africanas. Também os batuques, e mais
tarde o Candomblé com a criação da chamada “família de santo” reforçaram ainda mais
a legitimação dessa forma cúmplice de identificação.
Na história do Candomblé, é comprovada a persistência de certos valores e
práticas junto à ressignificação ou criação de outros valores e práticas. Há, portanto,
alguma coisa que permanece ao lado de outra que se modifica. Por isso, se faz
necessário o reconhecimento de certas continuidades herdadas da África, considerando
também que o indivíduo como transmissor de cultura se converte em agente de
mudança, e por isso a história do Candomblé precisa fazer um esforço de aproximação
aos sujeitos históricos que foram seus protagonistas. Isto é, no Brasil a formação do
hoje conhecido Candomblé deve-se a determinados povos africanos que ocuparam
principalmente o nordeste (mais precisamente Alagoas, Pernambuco, Sergipe e Bahia)
somado a condição de escravidão.
“O Candomblé assume, então, a função de manutenção de uma
memória reveladora de matrizes africanas ou já elaboradas como afrobrasileiras,
criadora de modelos adaptativos ou mesmo embranquecidos
– nos casos em que a religiosidade brasileira oficial participa
definitivamente desse sistema.” (LODY, 1987)
1.1.3 - Resistência sincrética.
A religião de matriz africana, assim como as demais manifestações culturais
afro-brasileiras, sofreu fortes represálias quanto a sua execução, sendo ainda mais
combatida por supostamente ir de encontro a religião oficial, a religião católica, e,
conseqüentemente, atentar contra os valores morais e sociais da burguesia colonial. Por
essa perseguição, e por certo apego desenvolvido pelos cativos em relação aos santos
católicos apresentados no Novo Mundo, é que o sincretismo se tornou conveniente no
sentido de despistar os proprietários de escravos sobre a natureza das danças e cantos
que estavam autorizando. Assim, rezava-se para santos católicos em referência às
entidades africanas, e as relações entre esses dois segmentos religiosos não se deu por
acaso, uniram-se elementos similares e representativos do santo católico que remetesse
ao orixá: “Pode parecer estranho, à primeira vista, que Xangô, deus do trovão, violento
e viril tenha sido comparado a São Jerônimo, representado por um ancião calvo e
inclinado sobre velhos livros, mas que é freqüentemente acompanhado, em suas
imagens, por um leão docilmente deitado a seus pés. E como o leão é um dos símbolos
de realeza entre os iorubás, são Jerônimo foi comparado a Xangô, o terceiro soberano
dessa nação.” (VERGER, p. 16, 1997)
O sincretismo não foi uma ação estrategicamente planejada, mas sim um
processo de reconhecimento e familiarização do que era apresentado, já que para
assimilar o novo toma-se por referência o conhecimento adquirido anteriormente. Os
santos católicos ao se aproximarem dos deuses africanos tornavam-se mais
compreensíveis e familiares ao recém-convertido. Não se sabe, porém, se essa tentativa
contribuiu efetivamente para converter os africanos, ou se ela os encorajou na utilização
dos santos para dissimular as suas verdadeiras crenças. Percebe-se, por fim, que tal
sincretismo possibilitou um “afrouxamento” das perseguições oficiais às manifestações
religiosas dos afro-brasileiros, que declaravam estar, ao seu modo, professando sua
cristandade. (Sobre a perseguição dos terreiros de Candomblé no Estado de Alagoas no
início do século XX, ver: RAFAEL, Ulisses, Xangô rezado baixo: Um estudo da
perseguição aos Terreiros de Alagoas em 1912. Rio de Janeiro: UFRJ/IJCS, 2004. Tese
Doutorado em Ciências Sociais).
1.1.4 - Resistência insistente.
A importância da cultura negra, no sentido da territorialização do negro no
Brasil, se deu pelo rompimento da divisão do espaço social e o aumento do alcance
dessa cultura, suavizando os conceitos que os estrangeiros faziam da cultura e do povo
brasileiro, além de suavizar também as relações conflituosas nacionais. É, pois, uma
vitória das camadas marginalizadas pela cor na sua conquista do direito de participar
dos folguedos carnavalescos de rua, ostentando suas músicas e danças, de visível
origem africana, revelando certa valorização destes traços culturais. É ao mesmo tempo,
um movimento de continuidade e afirmação de valores culturais negros, por ser um
discurso tático de resistência no interior do campo ideológico (SOUZA, 2006).
O candomblé, como referencia de resistência cultural contou com a ajuda de
uma ameaça real ou imaginada da “feitiçaria” sentida pelos senhores de escravos e,
posteriormente pela sociedade geral que não compartilhava da crença afro-brasileira. O
medo era o substrato psicológico que sustentava a feitiçaria e podia ser sabiamente
manipulado pelos especialistas religiosos.
Porém, a divulgação da cultura negra e mestiça num país sem uma identidade
nacional, possibilitou que tal cultura perdesse sua referência a um grupo especifico
como produtor, e passasse a ser vista como típica cultura nacional. Tal dissolução da
cultura negra na cultura nacional demonstra valorização desse segmento racial/étnico
para a formação brasileira, mas por outro lado, também dissolve sua fonte, tornando
difusa sua origem. Dessa forma, a cultura negra tão importante para a nossa formação
identitária enquanto nação perde seu vínculo de representatividade com seus produtores
e conseqüentemente, o que seria um estímulo a constituição da identidade negra se
perde e torna-se pouco objetiva.
Pensando na religião afro-brasileira como sincrética desde sua criação, e
imaginando que a religião dominante que a influenciou foi o catolicismo que está,
segundo Berger (1985), passando por um processo de secularização, supõe-se que assim
como o catolicismo está sendo descentralizado de sua posição dominante, dividindo
espaço com outras religiões, assim também, nas classes populares as quais o candomblé
era mais difundido, este também perde sua força centralizadora. Por outro lado,
podemos incluir o Candomblé como minoria cognitiva (BERGER, 1997), sendo um
grupo de pessoas cuja visão de mundo difere significativamente da visão generalizada
em sua sociedade. Mas, possivelmente na prática, a religiosidade afro-brasileira não
possua uma visão de mundo que difere radicalmente dos adeptos de outras
religiosidades, visto que a religiosidade brasileira compactua com um misticismo
africanista, um fascínio ou medo que legitima a veracidade dessa religião. A não ser
que se leve em consideração que apenas extra oficialmente é que se assume esse
misticismo dentre a maioria, e oficialmente ela é ignorada ou perseguida por várias
argumentações que a combatem: religião primitiva (no sentindo pejorativo), demoníaca,
etc. Nesse caso, os candomblecistas se incluem no rol da minoria cognitiva, ocupando
uma posição desconfortável, não pela perseguição ou intolerância da maioria, já que
racismo e intolerância religiosa são comportamentos vistos como politicamente
incorretos pelos brasileiros que os camuflam, mas por esse conhecimento religioso não
ser aceito como legítimo pela maioria. Segundo Berger (1997), na melhor das hipóteses,
um ponto de vista de minoria tende a ser defensivo, no pior das hipóteses deixa de ser
plausível para qualquer um. Assim, é que se ignora a religião de matriz africana no
Brasil, ou a trata como folclore, destituindo-a de sua plausibilidade.
Pensando na classificação descrita anteriormente, de minoria cognitiva, a
religiosidade afro-brasileira que se formou segundo Parés (2006), como uma instituição
periférica e socialmente marginal, com um discurso social paralelo e por vezes contrahegemônico,
isto é, à partir de uma resistência cultural, hoje se configura como religião
de resistência. A resistência foi a mola propulsora de sua criação, surgiu como uma
resposta a escravidão e como resistência a desumanização do africano escravizado, hoje
é a peça chave de sua manutenção e existência.
A marginalização dos negros e mestiços de negros no Brasil, durante e após a
escravidão, contribuiu para a formação e legitimação do Candomblé como religião, mas,
ao mesmo tempo, essa perseguição não só para com as pessoas de cor e traços negros
que são adjetivadas com estereótipos construídos negativamente, mas também com os
elementos culturais que remetem à essa negritude, pode ter causado uma certa aversão a
tais práticas por esses mesmos negros. Isto é, tentando evitar ou diminuir o racismo
sofrido, os negros evitariam qualquer manifestação cultural, comportamental ou coisa
que o valha referente à herança negra, como uma forma de camuflar ou amenizar uma
possível associação externa dele com a negritude. E por outro lado, enquanto
marginalizados socialmente, pode ter havido um reforço da identidade racial e cultural
diferenciada promovendo a procura de espaços de sociabilidade alternativos como o
candomblé.
A diferença ritualística, pagã, do candomblé e sua complexidade iniciática e
processual, junto com o preconceito de raça (transformado em marca, mais tarde)
provocou a demonização da religião afro, o que reforçava sua perseguição e opressão.
Assim mesmo, o Candomblé sobreviveu até os dias de hoje. Tal sobrevivência que
poderia ser considerado uma vitória da força de resistência do povo negro com essa
difusão do misticismo afro, pode também representar uma massificação e conseqüente
perda do referencial de origem, e sua significância para a formação identitária (positiva)
do povo negro, de sua negritude. Dessa forma existem movimentos contrários dentro da
instituição do Candomblé que, estratégica e perfomaticamente, divulga ao mesmo
tempo em que preserva e oculta a tradição. O Candomblé já tem um espaço nos meios
acadêmicos, conquistando simpatizantes com certa importância social, vem aderindo
aos cultos ecumênicos e exigindo participação nos eventos que tratam de religião;
muitos terreiros de axé tornaram-se também empresas financiadas por órgãos federais,
no intuito de difundir e perpetuar sua tradição, etc. Por outro lado, boa parte do culto
candomblecista é marcado pelos “segredos religiosos”, ficando só uma ínfima parte da
religiosidade aberta ao público em geral. Assim, crêem muitos babalorixás e yálorixás,
conseguem prevenir sua religião dos “ventos secularizantes1” e da banalização das suas
práticas.
1 Secularização é o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das
instituições e símbolos religiosos (BERGER, 1985)
“O candomblé caracteriza-se, entre outras coisas, por ser uma
religião iniciática e de possessão extremamente ritualizada, onde os ritos
são um acesso privilegiado às demais dimensões que o estruturam como
o tempo, espaço, corporalidade, conduta, hierarquia, cargos,
nominação, panteão, etc. Conseqüentemente, o ingresso na religião
implica uma ritualização correspondente do cotidiano dos seus adeptos
que absorvem, particularizam e transformam essa estrutura a partir do
modo como os ritos são rotinizados (vividos dentro da circunstância
própria) por cada grupo ao longo do tempo.” (SILVA, 1995, p.121)
Assim, esse movimento de “mostrar e esconder” a tradição religiosa do
Candomblé implica uma necessidade de se fazer aceito socialmente, ao mesmo tempo
em que visa preservar o que se caracteriza como sendo parte elementar de seu grupo
diferenciado. Pois, o que move a busca de uma identidade negra é o mal estar frente a
própria auto-imagem, causado pelas condições dadas socialmente, e seu intuito é
compartilhar uma herança cultural comum, numa cumplicidade agregadora de forças
contra o preconceito e o apartheid social simbólico.
1.2 – Negros pentecostais: Uma contramão da negritude?
Caracterizamos a afirmação identitária como sendo uma negociação social,
fazendo um recorte relacionado aos adeptos do Candomblé como sendo um estímulo
sócio/cultural a essa constituição da negritude. Dessa forma, avaliamos o histórico das
religiões pentecostais no Brasil, especialmente as conhecidas como neopentecostais, e
constatamos um discurso combativo à outras instituições religiosas, como a católica,
mas com maior ênfase, críticas diretas às religiões de matriz africana, demonizando seus
deuses, afirmando que seus adeptos cultuam o mal. Iremos, à partir desse pré-suposto,
entender como se dá a afirmação da negritude num contexto religioso que vai de
encontro a grande parte dos seus elementos constitutivos, a história e cultura negra no
Brasil, supostamente dificultando a identificação de negros pentecostais com os
mesmos.
1.2.1 - O fundamentalismo cristalizando o racismo na Igreja Pentecostal.
Fundamentalismo é qualquer corrente, movimento ou atitude de cunho
conservador e integrista, que enfatiza a obediência rigorosa e integral a um conjunto de
princípios básicos (HOUAISS, 1997). Tudo que é fundamental como norma única de
um sistema de pensamento pode se levado às últimas conseqüências, transformando-se
num fundamentalismo.
O Fundamentalismo em questão foi um movimento iniciado no século XX por
volta de 1910 através de uma série de folhetos intitulado “Os fundamentos”, escrito por
vários autores britânicos e canadenses. Tais fundamentos são as verdades cristãs básicas
que os evangélicos – tanto históricos quanto pentecostais, enfatizam: a autoridade das
Escrituras, a divindade, a encarnação, o nascimento virginal, a morte expiatória, a
ressurreição corporal e a volta de Jesus Cristo em pessoa, o Espírito Santo, pecado,
salvação e julgamento, adoração, missão mundial e evangelismo.
Tais pontos são premissas cristãs, porém o que diferencia um cristão de um
fundamentalista é a interpretação desses pontos. Os fundamentalistas são dogmáticos e
autoritários, são indivíduos que se sentem ameaçados em um mundo dominado por
poderes malignos em atitude permanente de conspiração, que pensam em termos
simplistas e de acordo com esquemas invariáveis e, que, frente a seus problemas,
sentem-se atraídos pelas respostas autoritárias e moralizantes (GALINDO, 1995). Ser
fundamentalista é viver sob a égide da interpretação literal da Bíblia, é viver na
literalidade.
O pentecostalismo no Brasil é fundamentalista, basicamente. Desde sua
fundação, o pentecostalismo estava preocupado com a evangelização, e não com as
questões sociais de base, tanto que na década de 60 e 70 cresceu enormemente por não
estar voltado para questões sociais e, como era época de ditadura, não ser perseguido
por ela. Inclusive, reforçava a idéia de que era pró-ditadura ao investir contra os
comunistas, que é visto de forma preconcebida até hoje. Por causa do fundamentalismo,
a proposta pentecostal é radical e se aproxima do ascetismo que visa a santidade. Ser
santo para o pentecostal é distanciar-se do mundo, fazendo o crente viver como se
apartado dessa dimensão; ser santo é colocar o corpo em sacrifício, encher-se de culpa e
isolar-se ao máximo das coisas abrindo mãos de divertimentos “mundanos” e vestir-se
num padrão de obediência, é ser humilde, abnegado e obediente (sendo obediente o que
cumpre com as ordens das lideranças sem questionar, mesmo que vá de encontro aos
preceitos bíblicos), cordato, serviçal, ativo nos afazeres da igreja e ser consagrado por
isso, isto é, reconhecido.
Dessa forma, nesse modelo ascético e fundamentalista, muitas concepções
racistas são justificadas a partir da interpretação literal da Bíblia, ou até pela falta de
acesso a ela. A idéia de que a punição de Caim por ter matado seu irmão Abel foi
tornar-se negro é difundida enormemente na IURD (Igreja Universal do Reino de
Deus). À partir dessa premissa, os líderes da igreja afirmam que para o negro se salvar
precisa se afastar ao máximo dessa sua origem étnica, que ela é primitiva, pecaminosa e
demoníaca. Por outro lado, o que é difundido é que o pentecostalismo não possui
divisões raciais, que são democráticos, e que todos são “iguais perante Deus”, é a igreja
que mais divulga a democracia racial, que diz dar muito espaço pra os negros em sua
instituição, mas se assusta quando acusadas de racismo por demonizar as religiões de
matriz africana. Essa contradição entre o que prega e o que faz denuncia que a
democracia racial que difundem como uma marca positiva da igreja pentecostal não
passa de um mito. E Se o objetivo do mito da democracia racial é esconder os conflitos
raciais existentes e diminuir sua importância, a igreja pentecostal cumpre muito bem
com os objetivos dessa ideologia. Nas igrejas pentecostais, os conflitos existentes entre
as raças nas relações sociais no Brasil são tratados com distanciamento a ponto de
caracterizar quem se aventura a refletir sobre o assunto como ‘subversivo’, ‘desordeiro’,
e o pior de tudo, ‘possesso’ ou endemoninhado’. Afinal, pensar sobre racismo em um
ambiente onde impera o mito da democracia racial como algo divino é uma afronta aos
mais ‘santos’ e ‘consagrados’ (OLIVEIRA, 2004).
Esse discurso racista e segregacionista se potencializa quando o que entra em
jogo é a competitividade do pentecostalismo com outras religiões. Bourdieu (1987) fala
que para Max Weber o conteúdo do discurso mítico se correlaciona aos interesses
religiosos de quem os produz, difundem e o recebem, sendo o sistema de crenças e
práticas religiosas a expressão mais ou menos transfigurada das estratégias dos
diferentes grupos de especialistas em competição pelo monopólio da gestão dos bens de
salvação e das diferentes classes interessadas por seus serviços. Assim, o que parece
contraditório – criticar as religiões de matriz africana com intuito de conquistar seus
adeptos e pessoas de origem africana – nada mais é que uma estratégia de competição e
barganha política. E Bourdieu diz mais: que a religião tanto para Marx como para
Weber, cumpre uma função de conservação da ordem social contribuindo, nos termos
de sua própria linguagem, para a legitimação do poder dos dominantes e para a
domesticação dos dominados.
A Igreja Universal do Reino de Deus junto com a Assembléia de Deus, sendo a
primeira a representante neopentecostal mais popular e populosa, angariando grande
parte da população de baixa renda, cristaliza entre a massa de seus seguidores o ideal de
branqueamento sócio/religioso somado ao mito da democracia racial que impede que se
evidencie (e mesmo que esteja evidente é pecado denunciar tal evidência) o racismo
institucional que se mantém através de sistemas simbólicos alimentado pelo princípio da
divisão maniqueísta do mundo. Porque por mais que seja reconhecido que a instituição
faz uso da liturgia religiosa afro-brasileira em seus cultos, se divulga que tal religião é
inferior, primitiva e representante do mal, o que confere status naturalizante de
diferenças sociais, fundamentadas na relativa autonomia que a tradição marxista confere
a religião, levando a entender o sistema de produção da ideologia religiosa que
Bourdieu (1987, p. 33) denomina de “alquimia ideológica pela qual se opera a
transfiguração das relações sociais em relações sobrenaturais, inscritas na natureza das
coisas e, portanto, justificadas”.
Se a religião pentecostal é a que detém maior número de negros entre seus
adeptos e a que oficialmente mais combate a religião afro-brasileira e,
consequentemente, nossa herança cultural trazida e formada pelos africanos
escravizados, possivelmente esses mesmos negros que incham os cultos da IURD e da
Assembléia de Deus se escondem, evitam e até rechaçam sua descendência para
adaptar-se aos preceitos religiosos que estão inseridos. Então, se tudo que vem da África
para o Brasil, ou que simplesmente remete a África, tem origem suspeita para os
religiosos, os próprios negros são alvo dessa suspeita, visto que como fruto dessa
história e cultura maculada pelo mal de origem (A África seria o inferno na Terra, e os
africanos sofrem por cultuarem o mal) precisam ter a vigilância dobrada contra as forças
malignas, pois além de viver apartado das coisas mundanas, precisam se apartar de sua
história, descendência, de si.
Tentamos, pois, esclarecer nesse trabalho o papel da religião como formadora e
mantenedora de identidades, ficando a religião afro-brasileira como incentivadora da
negritude, e a religião evangélica pentecostal como possível alienadora da mesma, por
ressaltar valores negativos referentes à herança africana – seja a nível religioso,
lingüístico, fenotípico e cultural de forma geral.
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quarta-feira, 21 de abril de 2010

África do Sul

África do Sul
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Morte de extremista traz de volta tensão de apartheid ao país da Copa
Durante a democratização da África do Sul, o líder radical Eugene
Terre’Blanche quase levou o país à anarquia. Sua morte agora ameaça
causar mais tensão, às vésperas do mundial de futebol.
Ele estava determinado, junto com seus seguidores fortemente armados,
a manter o regime de apartheid na África do Sul e a avançar com uma
campanha de protestos e ataques destinados a impedir as primeiras
eleições democráticas no país em 1994.
Apesar de ser ridicularizado e desprezado por muitos, ele perseguiu
seu objetivo de exigir uma pátria para o povo africâner. Reunindo a
adesão de mais de 70 mil pessoas no auge de sua popularidade,
Terre'Blanche liderou seu exército próprio, ameaçando a população
local e todos aqueles entre seus seguidores que ousassem desafiar sua
liderança.
Com seus esforços fortemente focados em seus ideais de supremacia
branca, ele liderou no começo dos anos 90 uma invasão armada ao prédio
onde ocorriam negociações políticas sobre uma nova Constituição
democrática. Mas, apesar de suas tentativas de derrubar os planos de
Nelson Mandela e das delegações de negociadores, as eleições foram
pacíficas e abriram o caminho para a democracia.
Agora, o assassinato brutal de Terre'Blanche, supostamente pelas mãos
de seus trabalhadores rurais, mais uma vez levantou o fantasma do
conflito racial.
Fraco e sofrendo de um problema cardíaco, o líder de 69 anos do
ultradireitista AWB ("movimento africâner de resistência", na sigla em
africâner) foi espancado e morto no fim de semana a golpes de facão em
sua fazenda em Ventersdorp, no noroeste da África do Sul.
Dois de seus trabalhadores, um deles com 15 anos, já compareceram ao
tribunal, acusados de homicídio. (O caso foi adiado até 14 de abril).
Assassinato tem motivos políticos
A morte parece ter sido provocada por uma briga por salário. Mas logo
se atribuiu uma motivação política para o assassinato, devido a uma
polêmica envolvendo Julius Malema, líder da juventude do partido que
governa o país, o Congresso Nacional Africano (ACN).
Durante seus numerosos discursos, o jovem agitador provocou tensão
racial ao entoar frequentemente uma canção contendo a frase "mate os
boers" (agricultores brancos descendentes dos primeiros colonos
europeus).
A controvérsia sobre a canção foi violenta nas últimas três semanas e
levantou, em particular, a ira dos africâneres, que afirmaram que a
canção poderia incitar a violência contra eles.
Canção proibida
Semana passada, o Supremo Tribunal do país proibiu a execução da
música, classificando-a como uma "incitação ao ódio" nos termos da
Constituição sul-africana. O ACN afirmou que apelaria da decisão,
dizendo que a canção é histórica e uma importante relíquia da luta
antiapartheid.
O jovem líder carismático, que tem atraído um grande número de
seguidores na África do Sul, alimentou a ira de muitos ao levar a
música para além das fronteiras no último final de semana, entoando a
canção também no Zimbábue, onde a situação política já está bastante
carregada. Muitos fazendeiros brancos foram expulsos de suas terras e
alguns assassinados.
"Depois dos dois incidentes, o presidente sul-africano, Jacob Zuma, se
apressou em interceder, tentando acalmar os ânimos, apelando aos
líderes políticos para que pensem bem antes de fazerem declarações que
possam inflamar as tensões raciais. "É importante que todos os líderes
- de partidos políticos a organizações não governamentais - se unam
para pedir calma no país", disse ele, em entrevista no início desta
semana.
Tensão racial crescente
Os líderes políticos da oposição também opinaram sobre o debate. O
líder da oposição oficial da Aliança Democrática, Helen Zille, pediu
uma reunião urgente com o presidente Zuma, após o assassinato de
Terre'Blanche e o surgimento do que ela chama de "incidentes
racialmente polarizados".
Zille disse aos jornalistas que os casos recentes de intolerância
racial, incluindo o uso da música nesse contexto, quase desfizeram
tudo o que o país construiu nos últimos 16 anos. Ela apelou para que
tais canções sejam sepultadas em arquivos e museus.
Mas alguns analistas políticos dizem que é irresponsável associar o
assassinato de Terre'Blanche à música. Segundo Aubrey Matshiqi,
pesquisadora do Centro para Estudos de Políticas Públicas de
Johanesburgo, o momento em que a música foi entoada foi uma
coincidência infeliz.
"Devemos permitir que o processo judicial tome seu curso", disse ela à
Deutsche Welle. "Há uma aparente ânsia por parte de alguns grupos e
partidos políticos para estabelecer uma associação entre os dois
fatos. As pessoas veem isso como uma oportunidade para confirmar seus
preconceitos preexistentes".
"Mas a hora não poderia ter sido pior", disse à Deutsche Welle a
professora adjunta de política da Universidade da Cidade do Cabo,
Raenette Taljaard. "Ambos os lados podem igualmente aumentar as
tensões raciais".
Ela acredita que símbolos como a antiga bandeira sul-africana da era
de apartheid, emblemas neonazistas usados por membros da AWB, assim
como as canções de luta antiapartheid devem "permanecer no sótão, na
caixa etiquetada de 'história'."
Todos os olhos na África do Sul
A África do Sul está consciente de que precisa agir em conjunto para
diminuir as tensões raciais, visando a Copa do Mundo de 2010, que
acontece dentro de dois meses.
Sul-africanos de todas as cores vêm apostando há anos no evento,
investindo bilhões de euros na construção de estádios modernos, e em
infraestrutura de transportes e turismo. Taljaard acredita que esta
última controvérsia "não vai contaminar a empolgação com a Copa do
Mundo".
Mas ela acredita que as ameaças de racismo têm de ser tratadas com
grande sensibilidade, de modo que a percepção sobre a África do Sul
não seja ofuscada por incidentes graves, porém isolados.
"Com a contagem regressiva para a Copa do Mundo, temos de ter cuidado
para que não acabemos caindo em estereótipos", diz o líder do partido
conservador Frente da Liberdade Plus, Pieter Mulder.
Mulder, que representa o interesse de muitos africâneres, diz que tem
esperanças de que o presidente Zuma, juntamente com outros líderes
políticos, terá mão firme para sufocar a tensão racial. "O acordo de
1994 para a democracia não é automático. Deve ser resguardado por
líderes sábios, líderes moderados em todos os lados."
Embora a tensão renovada tenha provocado arrepios coletivos no país,
parece haver um número suficiente de líderes sábios e moderados em
todos os lados para evitar a repetição das ameaças de anarquia racial
que quase devastaram o país na transição para a democracia.

Autor: Kim Cloete (md)

Revisão: Carlos Albuquerque

Deutsche Welle