Ó se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e à sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre!, prega um pregador famoso. Portuga: a Bíblia tem palavras de feitor... Há um só Deus e um só mediador entre Deus e os homens, é Jesus Cristo, dizem outros; exorcizam os orixás como espíritos do Inferno e tratam de excomungar os seus fiéis e seguidores. Portuga: a Bíblia tem maneiras de inquisidor... Antigamente só padres brancos é que podiam explicar a Bíblia ao povo negro e bem sabemos o que foi essa explicação. Portuga, é como te digo: a Bíblia tem focinho de homem branco...Corrijo:- Focinho de opressor, isso sim!- Portuga: para nós, opressor e branco são sinónimos.- Crioulo: para nós, em Portugal, opressor é quem oprime, seja branco, seja preto.Então conto-lhe dos meus amigos em Lisboa. Entre eles, dois negros. Um, o Agostinho Neto, é a sisudez aguerrida; virá a ser o primeiro presidente de Angola. O outro, o
Amílcar Cabral, é a alegria militante; não verá a independência da sua Guiné-Bissau, será assassinado antes. O mais subversivo, o mais perigoso, o que mais assusta os opressores é a alegria contestatária, cuidam sempre de visá-la e abatê-la; perguntem ao Samora Machel se estou errado...Bem sei que estou a atafulhar conhecimentos adquiridos em épocas sucessivas. Explica-se: estava, ou estou, ou estarei a ser laçado por um nó do tempo, ali tudo a acontecer no agora, o que foi, o que é, e o que será.Ricardo aponta-me um contínuo do Banco do Brasil: é o Zé Pelintra, negro talhado em mogno, fraca figura, apagado, tímido, modesto. No terreiro do candomblé, quando nele baixa Ogum, o seu orixá, transforma-se num tipo dominador e combativo. Interrompo:- Ogum é São Jorge, não é?Ricardo irrita-se:- Nesse jacutá, Ogum é Ogum, não é São Jorge; Iansã é Iansã, não é Santa Bárbara; Xangô é Xangô, não é São Jerónimo; Oxalá é Oxalá, não é Jesus Cristo. Ali não há mixórdia, é tudo autêntico, sem carnaval para turista ver. Não é seita, é religião de oprimido. Entendes, ó Portuga?Entendo, mas quero ver. Ele hesita. Naquele jacutá só vai preto. E o pessoal ficaria renitente, ou mesmo desconfiado, com a presença de um branco. Não perco a oportunidade para malhar:- Como é, Ricardo? Vocês agora andam a trabalhar com negativos do racismo?Decide-se, leva-me. É a noite de 19 de Novembro, disso me lembro. Realmente sou olhado com desconfiança. Alguns até bufam, rosnam, hostilidade. Rufar ritmado de atabaques. Babalorixás e Ialorixás, sacerdotes e sacerdotisas entoam cânticos, alaluê, alaluá, não sei que mais numa língua ou dialecto africano. Zé Pelintra cai em transe, espuma, treme, cai no chão, esperneia. Logo se levanta e realmente mudou de personalidade, os seus olhos até chispam, saravá! baixou Ogum. Sempre a comandar, aconselha e ampara os seus fiéis, alguns dos quais também caiem em transe ao contacto das suas mãos. De repente olha para mim, aponta:- Ocê num tá creditando, num é?Abano a cabeça. Insiste:- Vê prá crê, cumo São Tomé, num é? Vosmecê num qué tomá uma cerveja?- Vinho, se houver. De preferência tinto.- Essa é bebida de Xangô, que é seu orixá, tou vendo. Vamo chamá...Aproxima-se de mim. Impõe as suas mãos sobre a minha testa. Apago-me.Quando torno a mim, já é dia 20. Fremem os atabaque e o povo canta:- Zumbi, Zumbi, oia Zumbi! Oia Zumbi mochicongo. Oia Zumbi! CANAVIAISMadrugada no terreiro, flores já murchas pelo chão. Ogum retirou-se. Sobrou o Zé Pelintra, fraca figura, outra vez a timidez subiu à tona. Ricardo diz-me que, apesar de branco, Axé, a força viva de Deus, manifestara-se em mim. Xangô, o orixá da Justiça, começara por baixar em mim. Depois, por mim tinham falado a princesa Aqualtune, a seguir os seus filhos Ganga Zumba e Gana Zona e, finalmente, o seu neto Zumbi dos Palmares. Hoje é o dia 20 de Novembro, data em que Zumbi foi executado. Talvez por isso...Se um orixá me usou para se manifestar no lado de cá, em compensação usei-o eu para ver o lado de lá. Ricardo diz-me que isso não pode acontecer, não é possível, nunca! Abano a cabeça: nunca? Mas tudo, vejo tudo, e como vejo...Vejo os canaviais de cana doce a ondular em todo o litoral do Nordeste brasileiro. Vejo os navios negreiros a aportar a Recife, zarparam da costa ocidental de África. Branca é sempre a cor do opressor? E os sobas e régulos africanos que venderam outros negros, seus prisioneiros, aos escravocratas brancos? Transportados como gado no porão, vejo que em Pernambuco desembarcam yorubás, angolas, benguelas, congos, cabindas, monjolos, quiloas, minas, rebolos e uns tantos mais, homens, mulheres, até crianças.Vejo a princesa Aqualtune a ser vendida num leilão de escravos. Vejo que a levam para a casa grande de um senhor de engenho. Dão-lhe um banho e roupa nova, vai aprender a servir à mesa.Vejo os seus irmãos e o seu povo amontoados na senzala. Vejo que, a chicote, são acordados antes do nascer do sol. Vejo que são empurrados para os canaviais e começam a cortar cana. Há negros promovidos a feitores, também eles usam chicote. Branca é sempre a cor do opressor? Vejo os cativos que juntam e amarram molhes de cana. Vejo que, às costas, os transportam para o engenho. Vejo a moenda, a casa de purgar, as fornalhas, a casa dos cobres, galpões e depósitos, vejo negros que não param de labutar. Trabalho muito, comida pouca, no máximo viverão mais seis ou sete anos.- Que morram! (diz um senhor). Em África, pretos é o que não falta. O que é preciso é produzir!Vejo o açúcar disputado pelos mercados da Europa. Vejo um cativo exausto a abrandar o ritmo de trabalho. Um feitor (negro, negro...) trata-lhe as costas a chicote. Um outro dá-lhe palmatoadas nas nádegas. Esfregam com sal as feridas, carne viva. Esse é o castigo para a preguiça, a dor ficará para sempre na memória.Vejo, a cavalo, um capitão-do-mato (negro, negro...), de carabina a tiracolo, a caçar um escravo fugitivo. Consegue laçá-lo. Se não conseguisse, apontava, fuzilava. Arrasta-o para a senzala. Impõe-lhe uma canga no pescoço e nela as mãos ficam presas. Dá-lhe então o tratamento de chicote e sal. Uma semana depois um capataz, mas branco, retira-lhe a canga, leva-o para o suplício do tronco, no qual os tornozelos ficam presos e, por isso, sentado ou deitado queda-se o preto, e logo leva o segundo tratamento de chicote e sal.Vejo que, apesar do risco, há escravos que não desistem de fugir. Vejo que, do porto de Recife, rumo a Lisboa, todos os meses largam navios e mais navios com o açúcar produzido por 66 grandes engenhos. A Europa muito aprecia esta doçura luso-tropical.PALMARESEm Pernambuco, os escravos fogem. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a
Tábua Cronológica.Não desistem, apesar do risco... E fogem, como fogem, não param de fugir... Antes a morte do que vida tal. Vejo um grupo de escravos fugitivos a estabelecer-se na serra da Barriga, hoje está no mapa de Alagoas. Isso ocorre, parece-me, por volta de 1600. Vejo que, uns dez anos mais tarde, também a Princesa Aqualtune consegue fugir para a Serra da Barriga. Nó do tempo, remoinhos, remoinhos, e logo vejo que em 1630 a população é já de 3 mil. É quando os holandeses invadem o Nordeste brasileiro. Vejo que a invasão desorganiza a produção açucareira. Vejo que o estado de guerra entre portugueses e holandeses facilita a fuga de um número cada vez maior de escravos. E que em 1670 eles já são 30 mil, república de negros que, por conta própria, correram em busca da liberdade. Ao quilombo dão o nome de Palmares, realmente palmeiras é o que ali não falta. Vejo que o território, a 30 léguas do litoral, é uma faixa com 200 quilómetros de largura, paralela à costa, e que vai desde a margem esquerda do curso inferior do São Francisco até à altura do Cabo de Santo Agostinho. Vejo que abrange o planalto de Garanhuns e, para além da Serra da Barriga, as Serras do Cafuchi, Juçara, Pesqueira e Comonati. Vejo que é banhado por nove rios. Vejo que a floresta e o terreno acidentado tornam difícil a incursão dos soldados brancos. Vejo que a república tem vários mocambos. O principal, o que foi fundado pelo primeiro grupo de escravos foragidos, fica na Serra da Barriga e leva o nome de Cerca do Macaco. Duas ruas espaçosas com umas 1500 choupanas e uns 8 mil habitantes. E Amaro, outro mocambo, tem 5 mil. E há outros, como Sucupira, Tabocas, Zumbi, Osenga, Acotirene, Danbrapanga, Sabalangá, Andalaquituche. Uma rede de 11 mocambos no quilombo de Palmares.Vejo que a floresta dá quase tudo quanto o povo precisa: frutas, folhas de palma com que fazem as coberturas das choupanas, também as fibras para a confecção de esteiras, vassouras, chapéus, cestos e leques. E ainda a noz de palma de que fazem óleo. Vejo que fazem vestimenta das cascas de algumas árvores. E que produzem manteiga de coco. E que plantam milho, mandioca, legumes, feijão e cana. E que fazem comércio dos seus produtos com pequenas povoações vizinhas, de brancos e mestiços, mas onde não impera a monocultura da cana. Portanto, de escravos não precisam eles. Afinal sempre é possível o relacionamento pacífico entre brancos e pretos, e agora estou a lembrar-me do
Amílcar Cabral, e do Agostinho Neto, e do Samora Machel. Não me chateiem, já disse que é um nó do tempo, remoinhos, remoinhos...Vejo que, em Palmares, as exigências de produção para alimentar milhares de bocas, e a urgência de promover o convívio de tanta gente, leva os palmarinos a organizar o quilombo como se fosse um pequeno Estado. Há leis que passam a regulamentar a vida dos habitantes e algumas são bastantes duras. Roubo, deserção e homicídio são punidos com a morte. Vejo que as decisões mais importantes são tomadas em assembleias nas quais participam todos os adultos. Reparo que a língua franca, naquela babel de tantas línguas e dialectos, é o português ou um crioulo de português. Sei que o mesmo acontecerá no outro lado do Atlântico e até no Índico. Observo que a autoridade é sempre aceite. Não sofrida, nem contestada, pois resulta da vontade colectiva.Eis-me agora em Olinda, remoinhos. Sei que haver além, naquelas serras, uma Terra da Promissão para os pretos, é o alvoroço permanente dos cativos em Pernambuco, tão perto fica a liberdade... "Há que arrasar Palmares, há que recuperar, vender ou matar os pretos fujões!" - ouço que dizem os senhores de engenho, diz também a tropa portuguesa. E tentam, vejo que tentam, muitas e muitas vezes tentam destruir o quilombo, mas repelidos acabam sempre. Só a Cerca do Macaco é defendida por uma tríplice paliçada, cada qual sob a guarda aturada de 200 homens. A defesa da liberdade é, sem dúvida, a grande organizadora do povo de Palmares.Primeiro são repelidos os portugueses e depois os holandeses em 1644. Vejo que estes até acabam por desistir de assolar o quilombo. Têm outras guerras mais prementes...Em 1654 os portugueses expulsam os holandeses do Nordeste brasileiro. Ao fim de 24 anos de guerras e guerrilhas, ficam normalizadas a vida da capitania e a produção açucareira. "Agora o que é preciso é arrasar Palmares!" - ouço os senhores de engenho a reclamar e vejo o Governador a concordar com a exigência.Mas também vejo que, no ano seguinte, uma das filhas da Princesa Aqualtune pare um menino ao qual é dado o nome de Zumbi, que significa Eis o Espírito! Como sei disto, eu cá não sei...ZUMBIZumbi retorna a Palmares. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a
Tábua Cronológica.Vejo que o menino Zumbi corre livremente pelas terras cultivadas do seu mocambo natal, a Cerca do Macaco. Vejo que, aos sete anos, soldados portugueses o apanham desprevenido e o arrastam, com outros negros, para Porto Calvo. Vejo o garoto ser oferecido ao padre António Melo. Vejo que o padre o baptiza com o nome de Francisco. Vejo que lhe ensina português e latim. Aprende rapidamente e começa a ajudar à missa. É considerado rapaz esperto, cativo mui fiel, vigilância abrandada e ele a preparar a retirada. Vejo que, aos quinze anos, finalmente foge da paróquia para Palmares, retorna aos seus.Vejo que nesse mesmo ano de 1670, Ganga Zumba, filho da Princesa Aqualtune, tio de Zumbi, assume a chefia do quilombo. Vejo que, em 1675, a tropa comandada pelo Sargento-mor Manuel Lopes, depois de batalha sangrenta, ocupa um mocambo com mais de mil choupanas. Vejo que os negros se retiram. Vejo que, cinco meses depois, os negros contra-atacam, combate feroz e Manuel Lopes é obrigado a retirar para Recife.Condutor dos guerreiros quilombolas é Zumbi, condutor já venerado e tem apenas 20 anos. Do meu caminho arredo almas, procuro-o, digo-lhe:- És tu o Espártaco negro?Olha para mim, desconfiado. Nele parece-me reconhecer a sisudez do Agostinho Neto.- Quem é esse?- Foi o chefe dos escravos sublevados, na Roma antiga.- O que lhe aconteceu?- Lutou até ao fim, foi preso e executado, morreu pregado na cruz.- Antes esse do que o outro que o padre Melo me queria impingir...Não me conformo:- Por que dizes isso? Logo tu, que até aprendestes latim e ajudaste à missa...Rasga um sorriso que reconheço ser o de
Amílcar Cabral. É quanto basta para eu ser apanhado por outro nó do tempo e dou comigo na igreja matriz de Olinda. O pregador famoso do Ricardo, afinal é o próprio padre
António Vieira. A dourar a mansidão, sermão ao povo negro:- Oh se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e à sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre!
António Vieira fala depois no Coré, que quer dizer Calvário. Explica:- Declara David no título do último salmo quem sejam os operários destas trabalhosas oficinas, e diz que são os filhos de Coré: Pro torcularibus filiis Core. Não há trabalho, nem género de vida no mundo mais parecido à cruz e paixão de Cristo, que o vosso em um destes engenhos.Remata:- Bem-aventurados vós se soubéreis conhecer a fortuna do vosso estado, que é um grande milagre da providência e misericórdia divina.Ouço e vejo tudo, desfaz-se o nó, retorno a Palmares. Quero continuar a conversa mas, sorrindo sempre como o
Amílcar, Zumbi acena um adeus, vai-se embora. Tem mais que fazer, os seus guerreiros esperam por ele.GANGA ZUMBA .Vejo que em 1676 Fernão Carrilho comanda as tropas das vilas apostadas na extinção de Palmares. Ataca o quilombo: insucesso! Regressa a Recife. Mas não desiste. No ano seguinte ataca a Cerca do Macaco. A princesa Aqualtune, o seu filho Ganga Zumba e a maioria dos negros conseguem fugir. Carrilho dirige-se depois para o mocambo de Gana Zona, outro filho de Aqualtune, mas encontra-o em cinzas, incêndio previamente ateado pelos habitantes, terra queimada. Entre as ruínas descubro uma capela com santos da Igreja Católica.- Mas o que é isto? - pergunto-me.Zumbi ressurge, sorrindo sempre:- De África para o Brasil, orixás ou santos, cada qual escolhe os seus, é a única liberdade que os negros têm...Desaparece.Carrilho assenta arraiais em Sucupira, pede reforços. Engenha operações-relâmpago, mata muitos pretos, aprisiona outros, entre estes Gana Zona e dois filhos de Ganga Zumba. Pensa já ter destruído Palmares, regressa a Recife, festejos. Porém, passados poucos meses, o quilombo já está reconstruído.O Governador Pedro de Almeida sabe que é muito difícil a extinção do quilombo. Mais lhe interessa a submissão do que a destruição. Se conseguir fazer a paz, concedendo perdão e alforria aos quilombolas, Palmares poderá vir a ser um novo reduto português, uma nova vila colonial. Manda emissários fazer a proposta a Ganga Zumba, que medita, remói e decide aceitá-la. Muitos chefes negros louvam a prudência e a sabedoria da decisão. Em 1678 Ganga Zumba manda ao Recife três dos seus filhos e mais doze chefes para firmarem a paz. Ganga Zumba é promovido a mestre-de-campo. Para comemorar o acontecimento, vejo que há missa de acção de graças na igreja matriz de Olinda.Vejo que irrompe Zumbi em desacordo, revoltado contra o tio:- Enquanto houver um negro cativo, nenhum negro será livre!Vejo Ganga Zumba a expulsá-lo da Cerca do Macaco.A JOVEM GUARDAZumbi congrega a Jovem Guarda de Palmares. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a
Tábua Cronológica.Acompanho Zumbi de mocambo em mocambo. Ouço que diz a cada jovem:- És tu um negro livre? E o teu pai, e os teus irmãos, que sofrem o tratamento de chicote e sal, que sofrem os suplícios da canga e do tronco? E a tua mãe, as tuas irmãs, que são forçadas a abrir as pernas para o senhor de engenho e para os filhos do senhor de engenho? Diz-me: tu és realmente um negro livre?Em poucos meses está arregimentada a Jovem Guarda do quilombo, guerras e guerrilhas, incêndio de canaviais até às portas de Recife e Porto Calvo. Armas de fogo e munições, só aquelas que os guerreiros negros vão tomando ao inimigo.Vejo que Pedro de Almeida liberta Ganga Zona e manda-o a parlamentar com Zumbi. O tio não consegue dobrar o sobrinho.Vejo que, na Cerca do Macaco, um jovem põe veneno na comida e assim morre Ganga Zumba. Agora, o incontestado imperador de Palmares, é Zumbi.Batalhas terríveis. Vejo que o Conselho Ultramarino Português se refere a Zumbi, "tão célebre pelas hostilidades que faz em toda aquela Capitania de Pernambuco, sendo o maior açoite para os povos dela." E ouço que dele diz um dignatário: "Negro de singular valor, grande ânimo e constância rara."Vejo que, em 1680, Aires de Sousa e Castro é o novo Governador de Pernambuco. Manda apregoar perdão e honrarias ao Capitão Zumbi. O Senhor Governador até já lhe chama capitão... Não morde o isco, segundo Ganga Zumba não é ele, não, não deponho as armas, enquanto houver um negro cativo, nenhum é livre!
DOMINGOS JORGE VELHO. Vejo que em 1686 há um novo Governador em Pernambuco, o seu nome é Souto Maior, e a guerra contra o Zumbi dos Palmares continua sempre sangrenta.Vejo que Souto Maior manda
chamar Domingos Jorge Velho, bandeirante paulista que, com a sua tropa, gente feroz, andava a prear e a matar os índios do Piauí. Vejo que, a troco de um quinto do valor dos negros recuperados, terras e perdão para os possíveis crimes dos seus homens, o convida para a guerra contra Palmares. O governo entrará com as armas, munições e víveres. Vejo que o acordo entre ambos é assinado em 1691. Vejo mil homens a atacar Palmares e vejo Zumbi e a Jovem Guarda a resistirem na Cerca do Macaco. Vejo Domingos Jorge Velho retirar para Porto Calvo.Mas também vejo que o Governador manda o Capitão-mor Vieira de Mello ajudar o bandeirante. De 23 a 29 de Janeiro de 1694, duas vezes a tropa tenta romper a Cerca, duas vezes são repelidas. Até mulheres, lá do alto, lançam água a ferver sobre os soldados portugueses. Mas a 6 de Fevereiro, de Recife chegam bombardas. Assestam, disparam, a tiro grosso conseguem rasgar brechas na tripla cerca do mocambo. É por elas que os soldados invadem a cidadela, corpo-a-corpo, massacre, charcos de sangue. Vejo que Zumbi leva dois tiros mas consegue escapar.
- Zumbi não morre, oia Zumbi! não pode morrer, oia Zumbi! tem o corpo fechado, oia Zumbi! - rezam os negros.Vejo que em 1695, no caminho de Penedo a Recife, é preso um velho quilombola. Prometem-lhe a vida se apontar o esconderijo de Zumbi. E ele aponta. O bandeirante André Furtado de Mendonça é quem comanda o cerco, vence, prende e degola Zumbi dos Palmares. É o dia 20 de Novembro de 1695. O bandeirante leva a cabeça para Recife, repicam os sinos, dia feriado, acção de graças.- Zumbi, Zumbi, oia Zumbi! Oia Zumbi mochicongo. Oia Zumbi!Vejo que os negros aprisionados são todos vendidos para capitanias distantes, assim se corta pela raiz a esperança de regeneração do quilombo. As terras de Palmares são divididas em lotes e doadas em sesmarias aos capitães vencedores. De 1600 a 1695... Durante quase cem anos um espinho cravado na garganta dos escravocratas de Pernambuco... Os tais da casa grande e senzala, os do melaço luso-tropical...FE
ITIÇO ...Quando torno a mim já é dia 20. Fremem os atabaques e o povo canta:- Zumbi, Zumbi, oia Zumbi! Oia Zumbi mochicongo. Oia Zumbi!Cativos do racismo, não me espanta que os filhos de escravos negros invoquem o espírito do Espártaco negro. Atordoado, saio do terreiro.O Ricardo quer levar-me a casa, de automóvel. Agradeço mas recuso, prefiro ir a pé, estou abafado, talvez a brisa da madrugada me refresque. Alcanço o Largo do Machado e começo a subida. Moro em Santa Teresa, é bairro que me seduz. Lá do alto, gosto muito de ver a cidade a contornar os morros e a esparramar-se pelas praias.Ouço passos, volto-me, mais abaixo há dois vultos que me seguem. Certamente dois do jacutá, escamados com a presença de um branco. Não me apresso, que venham, logo se vê...Zumbi traído,
Amílcar traído, a traição nunca desarma. E os Ganga Zumba que há na vida? Cuidar da nossa pele, da nossa pança, os outros que se danem, quem não chegou, chegasse... E os que lutaram pela liberdade e, de oprimidos passaram a opressores? Como aquele negro que lutou na Guiné, lado a lado com o
Amílcar? Terá de ser sempre assim, não damos outra volta às nossa vidas?Chego a casa, não olho para o lado, meto a chave, entro, puxo os lençóis, caio na cama, a ver se durmo...Na manhã seguinte, à minha porta, está uma galinha preta degolada. Dou-lhe um pontapé, o bicho levanta voo rasante, cai na valeta. Estou de bem comigo, tenho o corpo fechado, feitiço em mim não ferra o dente.